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TOC TOC”: Releitura cheia de brasilidade de um ímã de gargalhadas

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Mina de boas e rentáveis ideias, o dramaturgo francês Laurent Baffie está toda hora no cinema, onde trabalha também como realizador há 25 anos, desde que dirigiu o curta “Hot Dog”. Basta um de seus filmes, o ímã de gargalhadas “Les Clefs De Bagnole” (2003), para entender o bem que ele faz à pátria de comediantes como Bourvil, Louis de Funès e Dany Boon com sua forma direta, curta, mas nunca grossa de ir ao cerne do patético e dele arrancar risadas. Empresta sua voz a rádios com muita desenvoltura, capturando ouvintes fieis às ondas de AM e FM, e ataca também na TV, em humorísticos e programas de variedade, sempre fiel a uma verve cômica sintonizada no legado de Molière: ou seja, um fraseado breve, arejado de ironia, no qual a palavra devassa a caretice. Como é típico do humor de sua pátria, ele não bate cabeça para a correção política e investe em termos hoje cancelados sem medo de provocar, como é possível conferir na recente (e impecável) adaptação brasileira do fenômeno “TOC TOC”. 

O que a atriz Sara Freitas faz com o texto já vale o ingresso e olha que há um elenco inteirinho em pura inspiração ao lado dela. Seu desempenho pode ser medido pelo quaquaqua a cada vez que ela abre a boca. 

Tudo se passa em um consultório, onde um grupo de pessoas assoladas por distintas formas de Transtorno Obsessivo Compulsivo (o tal TOC do título) trombam enquanto aguardam a chegada de um médico renomado, o Dr. Stern. Sua fama é de apresentar uma cura numa só sessão. A esperança de ajuda e alívio mantém ali, em tensão plena, um time nas raias da inquietação. A personagem de Sara, Lili, repete tudo o que diz, numa reprise contínua de seu discurso. Um simples “Oi” ganha um gêmeo… um segundo “Oi”. Tudo é dobrado em seu falar. Tudo… 

Aliás, Clara Carvalho, a tradutora, merece todas as loas pelo ritual catártico que a montagem de Alexandre Reinecke (responsável também pela cenografia, ao lado de Sandro Chaim) gera com base nas rubricas e nos diálogos escritos por Baffie. A presença de uma trupe estelar funciona como um chamariz. A isca é um aperitivo para um banquete que conta com um Daniel Dantas em estado de graça no registro da galhofa. Ele vive Fred, um editor de livros aposentado que luta contra a Síndrome de Tourette, distúrbio que o leva a soltar palavrões sem querer. Cada vez que lança mão de uma ofensa, nas expressões faciais bovinas construídas por Dantas, Fred mata a plateia de rir. Cada “pqp” ou cada “vai se f…” extai um coro de Kakakakas

Além de Fred e de Lili, a sala de espera do Dr. Stern conta com mais quatro TOCers. Branca (Letícia Lima) é uma inimiga mortal dos germes, obcecada por limpeza; Maria (Claudia Ohana) é uma religiosa cheia de ferver que precisa checar tudo dezenas de vezes, sobretudo a fechadura; Bob (Miguel Menezes) lembra o Jack Nicholson de “Melhor É Impossível” (1997), em seu fascínio por simetrias e sua inabilidade de pisar no chão sem reparar nas linhas; e o taxista Vicente (André Gonçalves, em inspirado desempenho), que faz contas de tudo, a somar, dividir, subtrair e multiplicar sem controle. A assistente do médico, papel de Jade Mascarenhas, é a única figura em cena sem uma compulsão aparente.


A peça original estreou em dezembro de 2005, no Théâtre du Palais-Royal. Sua premissa de ação: diante da demora do Dr. Stern, os pacientes falam daquilo que sofrem e, pouco a pouco, regulam-se, numa talking cure onde a compreensão alheia vira um abraço coletivo. Esse mote ganhou a adesão do público parisiense de cara e viajou pela Espanha, onde virou coqueluche, contaminando também a Argentina. Foi encenada por aqui no passado, pelo próprio Reinecke, numa versão (muito boa), com Marcia Cabrita e Riba Carlovich. Por onde passa, essa narrativa acerta.  

O próprio Baffie rodou uma versão dela para a TV, em 2008, com base na montagem estrelada por seu habitual parceiro Daniel Russo, com que fez a desvairada “Sexe, Magouilles et Culture Générale”, em 2001 (que merecia ser montada aqui). Em 2018, o valenciano Vicente Villanueva rodou uma divertida versão de “TOC TOC” para o cinema espanhol, com a diva almodovariana Rossy De Palma. Há um ano, a peça foi filmada na Turquia, por Yunus Nihat Özcan. O longa lá se chama “Takintilar”.

Cada vez que “TOC TOC” é revisitado, o eixo é a solidariedade. Reinecke mantém essa linha em um trabalho de direção preciso, salpicado de brasilidade. Nosso famoso “jeitinho” é retratado com precisão na figura do chofer Vicente, que Gonçalves encarna com galhardia. A sanha feroz do fundamentalismo é bem refletida na Maria interpretada por Ohana. 

O que se vê, a partir de uma história importada do Velho Mundo, é um microcosmos de Brasil. Fred (Dantas, primoroso em cena) é o resquício da cordialidade que nos serve de base e que, por vezes, pode ocultar intenções de controle, de comando, assim como pode apontar altruísmos. A sagacidade do ator é fazer seu personagem gravitar por múltiplas camadas e se manter forte em todas elas, enquanto a gente se acaba de rir.

Saiba mais sobre a peça!  

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