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“A Baleia” extrai colossal atuação de José de Abreu

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Embora “Moby Dick” navegue com mais graça no oceano do inconsciente coletivo, uma vez que sua personagem-título foi caçada até por Gregory Peck (1916-2003), o texto hoje mais estudado de seu autor, o nova-iorquino Herman Melville (1819-1891), é “Bartleby, O Escrivão” (1853). Sua análise ampliou-se no século XXI pelo fato de ter oferecido aos estudos literários a percepção apática da falta de projeto ideológico da contemporaneidade. No conto se lê: “Nada incomoda tanto uma pessoa sincera quanto a resistência passiva”. Não é desse Melville que se fala em “A Baleia”, peça de Samuel D. Hunter, mas o espírito é similar. Não por acaso, um dos signos do espetáculo é um sofá. Nele, não há fricções. A esperança é expressa em sutilezas. 

Nesse tal sofá, encontra-se um homem que amava Melville, ou, no mínimo, o relato dele sobre um cetáceo que servia de metáfora à Modernidade, o encouraçado artístico que atropela as pasmaceiras do pensamento clássico e amputa os membros inferiores que sustentam a inércia do processo civilizatório. Classificada como cachalote, Moby Dick estraçalha aqueles que se consideram profetas de seu próprio destino sem vazarem o oceano da futilidade imputado a eles pelas convenções sociais. “Eu não sei tudo o que está chegando, mas seja o que for, eu vou até lá rindo”, escreveu Melville, que fez seu Bartleby ser herói ao dizer “Prefiro não”, refutando ordens. Navegar é preciso, como bem recomendavam os argonautas, mas no refúgio de uma poltrona, no sommier da acomodação, os remos da vida se estagnam. Charlie estagnou.    

Farol dentro da ilha em que esse dedicado professor de Redação transformou seu corpo, beirando cerca de 200 quilos e isolando-se do mundo, Melville cunhou a frase ideal pra quem ensina o verbo “perseverar”: “É melhor falhar na originalidade do que ter sucesso na imitação”. É o que Charlie diz a estudantes via Zoom, sem ligar a câmera de seu computador, alegando falha no hardware. A fala vem da incapacidade que ele tem em se aceitar. Em aceitar a dor que o levou à condição retratada no inquietante “The Whale”, título original do drama de Hunter, que virou filme – e que filme! – em 2022, pelas lentes (geniais) de Darren Aronofsky. 

Foi o mais encantador de todos os concorrentes ao Oscar de 2023, sobretudo pela forma como seu protagonista, Brendan Fraser, imola-se diante da câmera. Talvez por sua magnitude, ver a forma como José de Abreu se sai no mesmo papel é algo tentador. Fraser foi um ídolo para quem adolesceu ou iniciou a vida adulta na década de 1990, sobretudo depois de “George da Selva” (1997) e “A Múmia” (1999). 

Viveu um estrelato gigante e decaiu, atomizado por uma série de conflitos pessoais e profissionais. Quando ganhou a estatueta de Hollywood, há dois anos, por seu desempenho como Charlie, disse “Isso aqui é o multiverso!”, sem acreditar no próprio comeback. Sua vitória carregava a mítica da redenção. Sua interpretação tinha mel, apesar de todo o fel de Charlie. 

Aliás, a montagem brasileira conta com tradução e direção de Luís Artur Nunes, e atuação colossal de José de Abreu. Estamos diante de um dos mais talentosos atores do Brasil (e em qualquer mídia), que ajudou a fazer de “Antes Que Eu Me Esqueça” (2017) e de “Anjos do Arrabalde – As Professoras” (1987) filmes seminais. Seu Charlie não requer comparações com o de Fraser. Eles não se eclipsam. Cada um é astro num sistema solar próprio, que tem na carpintaria dramatúrgica de Hunter seu sol.  

O que dói em Charlie não são os quilos da obesidade mórbida que estão conduzindo-o para a morte, conforme a amiga e enfermeira Liz (Luisa Thiré, numa afetuosa composição) alerta. O que lhe dói é a incapacidade (aparente) de fazer com que a filha com quem ele pouco tinha contato, Ellie (Gabriela Freire), possa se aceitar no turbilhão hormonal de sua adolescência. A culpa que Charlie carrega , certamente, não vem da escolha de ter deixado seu casamento com a mãe de Ellie, Mary (Alice Borges, em radiante participação), para se casar com um ex-aluno por quem se apaixonou. A culpa em seu peito entupido de colesterol vem do fato de não ter conseguido fazer o rapaz, seu amado, aceitar-se, livrando-se de todas as ataduras moralistas de seu culto religioso. 

O tal culto volta a bater em sua porta, agora que sua saúde está com o prazo de validade contado, na figura de um missionário (Eduardo Speroni), num momento em que Ellie reaparece, pedindo ajuda em Gramática. É um momento no qual a foice do excesso parece pesar sobre sua cabeça.

No cinema, “excesso” é a palavra mais essencial para entender a adaptação da grafia teatral de Hunter, uma vez que sua versão para as telas é esculpida por Aronofsky, o diretor de “Cisne Negro” (2010). Desde 1998, quando rasgou cartilhas de convenções cinéfilas ao lançar “Pi”, ele concretizou uma reputação singular como “O” cronista de tudo o que é excessivo. Do excesso de entorpecentes (em “Réquiem Por Um Sonho”) ao excesso de vaidade (abordado no estonteante “The Wrestler – O Lutador”, que lhe rendeu o Leão de Ouro em 2008), Aronofsky fala sobre pessoas no limite do aceitável, no transbordamento de seus desejos, no limiar do tolerável. A saúde de Charlie não tolera mais nenhuma das asinhas de frango frito que ele devora, nem as fatias de pizza gotejantes de óleo que adora. Exceder-se é uma forma de ele se proteger e superar obstáculos.

Não existe esse traço do “excesso” em Luís Artur Nunes, um meticuloso pensador do espaço cênico. Em seu histórico autoralíssimo na direção, ele traduziu a gravidade moral que nos empuxa e nos aterra a partir de soluções gráficas requintadas, vide sua montagem de “A Mulher Sem Pecado”, em 2000, e seu cartunesco “A Vida Como Ela É” de 2002. Seu “A Baleia” se preocupa mais com alianças, as possíveis e as derradeiras. O Melville citado por Hunter dizia: “Acredito que meu corpo não passa de um abrigo para meu melhor ser. Na verdade, que leve meu corpo quem quiser, pois ele não é quem eu sou”. É do sentido existencialista da palavra “ser” – no caso, “ser pai” – que “A Baleia” de Luís Artur fala, lindamente. 

Nos afluentes em que o verbo viver se mete (ou se perde), a paternidade pode ter um peso de Moby Dick e esmagar relações partidas. Pode também, contudo, ter a leveza que o mamífero aquático de Melville por vezes demonstrava e transformar abraços em abrigos. Nessa bifurcação de caminhos, Luís Artur opta por águas quentes, de afetuosidade e de reconciliação. No borbulhar delas, José de Abreu inscreve sua atuação na Eternidade, na luz outonal da iluminação de Maneco Quinderé. Luz que nos inebria.  

Saiba mais sobre a peça!

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