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Bailarina tem uma Helena de Manoel Carlos de arma na mão

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Candidatando-se à posteridade por sua destreza, expressa sobretudo por uma sequência de briga com pratos, Bailarina concretiza uma promessa que já soma 22 anos e sempre morreu na praia: a consolidação do diretor Len Wiseman como artesão do frenesi nas narrativas de ação. Seu trabalho é impecável no controle de fluxo de uma sucessão de combates, cada um mais visceral do que o outro, para que nenhum dos enfrentamentos se desgrudem da unidade dramatúrgica (ou seja, da premissa) que os norteia. De quebra, ele ainda se alinha à vertente da “cinemática” (escrita fílmica pelo movimento) que deu identidade (e fama) à saga “John Wick”, à qual a anti-heroína interpretada por Ana de Armas (dublada no Brasil pela sempre precisa Fabiana Aveiro) se filia.  

Bailarina

Egresso de videoclipes do Megadeath e de Rufus Wainwright (grifes musicais distintas até o talo), o cineasta californiano se candidatou a uma vaga em Hollywood com “Anjos da Noite” (“Underworld”, 2003), mistura de terror com pancada, visualmente decalcado de Matrix, com vampiros em guerra contra lobisomens. Para filmá-lo, ele gastou o equivalente a duas mariolas (US$ 22 milhões, o que pro cinemão americano é um cafezinho). Faturou uma baba (US$ 95,7 milhões) e lançou a candidatura de (sua então companheira) Kate Beckinsale a um estrelato que não foi adiante. De toda forma, fincou um princípio de prestígio, respeitado por enquadrar situações de tensão e violência física com um dinamismo que havia sumido das telas. 

Nos anos 2000, a adesão plena dos estúdios hollywoodianos ao CGI (Computer-Generated Imagery) foi descarnando os filmes de uma essencialidade humana, trocando a artesania do passado por uma cultura digital. Essa mudança de paradigma, na qual até figurantes passaram a ser multiplicados por softwares, na pós-produção, deixando de lado a cultura de contratar multidões de extras para encher a tela, como se viu (por exemplo) no oscarizado “Gandhi” (de 1982), passou a reverberar sobretudo nos longas de aventura e nos thrillers. 

Naquela época (que deixou sequelas), a montagem se enquadrou num rimo de aceleração tão intenso que as tomadas de briga eram resolvidas na edição, o que tirou delas o realismo. Este só se fazia notar nos filmes de Hong Kong (via Tsui Hark e Johnny To), nos épicos sazonais de Zhang Yimou (“O Clã das Adagas Voadoras”) e nas joias de tom noir da Coreia do Sul que só foram descobertas depois que Quentin Tarantino deu o Grande Prêmio do Júri de Cannes a “OldBoy” (2004), quando presidiu o festival francês. O diretor de “Pulp Fiction” (1994) também trouxe uma fagulha de inovação para o terreno com “Kill Bill”, nos seus Volumes I (2003) e II (2004), sem os quais “Bailarina” não existiria, pois tem muito de A Noiva (Uma Thurman) nela.       

Com a experiência da invenção poética dos clipes da Era MTV (ainda que de seu eixo final), Len Wiseman sabia usar os trocados que tinha para fazer espetáculos em que se notava o suor e o sangue dos combatentes num quebra-quebra cheio de efeitos visuais, o que conferia realidade a seus planos, mesmo quando eles tateavam o sobrenatural. Repetiu a eficiência em “Anjos da Noite: A Evolução” (2006) e logo foi chamado para um projeto de mais tarimba: dirigir Bruce Willis na volta de John McClane em “Duro de Matar 4.0” (2007). A quarta peripécia do policial que revolucionou o gênero action films em 1988 faturou bonito (custou US$ 110 milhões e arrecadou US$ 388 milhões) mantendo seu realizador na sala de espera para ingressar num panteão de operários com poesia no olhar e eficiência na entrega.

Promovido na hierarquia de Los Angeles, Wiseman voou alto demais (e mal) ao se candidatar, em 2011, a rodar uma nova versão de “Total Recall”, a partir do roteiro filmado por Paul Verhoeven em 1990 e consagrado como um marco pop da sci-fi. Cometeu a sandice de escalar (sabe-se lá por qual motivo) Colin Farrell para um papel que se tornou célebre com (!) Arnold Schwarzenegger. Trocou um Maciste por um filé de borboleta. Aí, já viu… flopou… e bonito. 

Esse fracasso, de 2012, restringiu Wiseman a dirigir séries (como “Lúcifer”) até que apareceu a brecha para engatar uma nova marcha na telona, num spin-off de “John Wick”, que demandava alguém capaz de filmar anti-heroínas sem objetificações sexistas, oferecendo uma apoteose a boas atrizes. O mestre maior nesse segmento é Luc Besson, desde “La Femme Nikita” (1990), mas o francês anda hoje noutros investimentos, como dono de produtora, realizando projetos pessoais. Na falta dele, tome-lhe Wiseman, que soube equalizar bem o potencial de sua atual protagonista em “Bailarina”. 

Ana de Armas, cubana nascida em Havana, vem demonstrando desde Entre Facas e Segredos (2019) que tem estrela, e das mais coruscantes, para se firmar no imaginário cinéfilo por seu talento. A alquimia que se vê entre ela e a câmera de Bailarina confirma isso e pode reatar as relações entre seu realizador e o público – e reaver a simpatia dos executivos por ele).      

Amparado na direção de fotografia dionisíaca de Romain Lacourbas (de “Colombiana”, com Zoe Saldaña), Wiseman se preocupa em consolidar uma personagem tridimensional a partir dos rascunhos de uma pessoa (no caso, a dançarina E matadora de aluguel Eve Macarro) que o roteiro de Shay Hatten lhe oferece. Nesse esforço, ele explora o quanto pode as verves de Valquíria da personagem, calçando-se no vigor cênico de Ana. Estrutura junto com ela um espetáculo explosivo capaz de conversar com a matriz B dos filmes de John Wick, que está em cena, vivido por São Keanu Reeves (dublado pelo gênio Reynaldo Buzzoni). 

Mesmo não sendo um petisco B de raiz, como se via, com os filmes de produtoras icônicas como a Cannon com Chuck Norris (“Comando Delta”) e Michael Dudikoff (“American Ninja”), “Bailarina” notabiliza-se por emular (bem) o espírito anárquico das narrativas de soco, tiro e pontapé do passado, distinguindo-se dos “filmes de algoritmo” dos nossos dias pela sua absoluta entrega à vertigem e desdém à ditadura moralizante do politicamente correto. É cinemática pura, como se via nas comédias de Buster Keaton no início do século passado. Até o cabelo comprido de Keanu lembra o visual da estrela de “The Cameraman” (1928), nas correrias sem fim.   

Corre-se muito ao longo das duas horas e cinco minutos de “Bailarina” – e sem que a gente note o tempo passar – por sua conexão com uma estética de centrífuga delineada há uma década pelo realizador Chad Stahelski, um lutador de kickboxing que trabalhava (muito… e bem) como dublê de cinema. “John Wick” veio dele, em 2014. Ele teve como parceiro e cocriador David Leitch, também dublê e produtor, que lhe deu um apoio na criação de uma linguagem 100% cinemática. O termo ao lado é uma referência da Lei de Aceleração, levando a ação a parâmetros dignos de um cartoon do Papa-Léguas contra o Coiote. As normas de gravidade e a sua verossimilhança são dignos da Acme, aquela fábrica fictícia dos desenhos animados “Looney Tunes”, do Pernalonga. Como naquelas animações alucinadas, o argumento dos calvários de Wick e, agora, o da Bailarina Eve é um fio muito tênue, mas serve de vetor a sequências de perseguição e de enfrentamento corpo a corpo num grau de vertigem singular.

Com “John Wick”, essa fórmula rendeu US$ 1 bilhão, diluído ao longo de quatro filmes. Espera-se alto de “Bailarina”, que custou cerca de US$ 80 milhões, mas entrega visualmente um glacê de superprodução, com um recheio de adrenalina dos mais saborosos – e autênticos – graças à montagem feérica de Jason Ballantine e Julian Clarke. A edição deles já começa febril quando Eve é moleca e vê seu pai ser assassinado a mando do Chanceler, ferrabrás no comando de uma guilda de matadores que se mantém nas raias da barbárie. O vilão vira um presente para o público quando se vê que seu intérprete é Gabriel Byrne, gênio por trás de “Ajuste Final” (1991), dos Irmãos Coen, que foi o Diabo em pessoa em “Fim dos Dias” (1999). Poucos atores encarnam a Maldade feito ele faz. 

Essa morte cometida pelo Chanceler deixa a pequena Eve à míngua até ela ser adotada pela organização de Wick, a Alta Cúpula, pelo líder do crime Winston (Ian McShane) e confiada a uma de suas agregadas, a célula de assassinos Ruska Roma, chefiada pela coreógrafa (e bandida) A Diretora, um trem-ruim que Anjelica Huston encarna com elegância à flor da pele. Treinada para matar, Eve é solta pelo mundo e passa a diminuir a densidade populacional da Terra por dobrões de ouro, o que é o código de seu clã.

Numa tarefa, ela esbarra com o Chanceler e decide se vingar o que a faz cair em desgraça aos olhos da Ruska Roma. Não por acaso, Wick, o Baba Yaga em pessoa, é escalado para dar cabo dela, num enredo que se passa antes do quarto longa da série com Keanu, lançado em 2023. Com ele em seu encalço, o que deveria ser um conto sobre revanche se torna uma batalha por sobrevivência, que molda Eve como uma personagem cheia de camadas. A inteligência maior do script é salpicar melodrama na tela, sobretudo na entrada de uma outra matadora, Lena, vivida pela colombiana Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar por “Maria Cheia de Graça” (2004). O folhetim faz de Eve uma Helena de Manoel Carlos de arma (e De Armas) na mão. Há uma luta para que a filha órfã dentro dela se mantenha viva, sem se deixar tomar por completo pelo ódio daquelas gentes cujo ofício é matar. 

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