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Levados pelas marés: Jia Zhang-Ke faz crônica em contraste com o mundo moderno

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A chegada de uma nova obra de Jia Zhang-Ke não pode ser tratada como mais um acontecimento para o cinema. Vindo do Festival de Cannes 2024, Levados pelas Marés aportou na Mostra de São Paulo e saiu de lá com o prêmio de melhor filme para a crítica. É normal o entusiasmo e o resultado de uma competição onde ele esteja, já que o Brasil parece muito mais conectado ao que o realizador chinês faz do que a Croisette, embora ele tenha o hábito de estrear seus filmes lá. Com esse novo filme, entendo o desconforto do espectador menos envolto a ele, Levados pelas marés é construído a partir de material restante de seus últimos filmes, ele consegue criar uma obra singular ainda assim, como uma provocação à modernidade que sempre o apavorou. 

Levados pelas marés

Jia é um realizador que, assim como Emmanuel Mouret da outra fantástica estreia da semana Três Amigas, também completou 55 anos. Sua carreira, no entanto, é muito mais reconhecida – Leão de Ouro em Veneza por Em Busca da Vida, melhor roteiro em Cannes por Um Toque de Pecado, entre outras obras consagradas. Entre elas, o propósito de enxergar o passado da China mais artesanal e terno, em contraste ao mundo moderno, que faz ruir o Estado, as relações, o indivíduo. Levados pelas Marés poderia ser lido como uma leitura da própria obra, já que se completa de cenas já adquiridas previamente, mas inclusive isso tem um propósito. A denúncia ao ultra capitalismo, que não absorve nada além do dinheiro, e deixa escapar a essência do que já teve vida, na memória recente. 

As imagens que abrem o filme (e quando falo abrem, estou me atentando a pelo menos 20 ou 25 minutos de projeção) estão entre essas capturas do passado, eventos de caráter macro, que nascem da observação do cineasta, que com isso nos batiza de cúmplices. São ações coletivas, grupos de trabalhadores, amigas em reuniões barulhentas, que servem para nos situar em contexto socialista, a maneira como os empregos manufaturam o particular, as ideias de diversão que existem atrás do dinheiro. Após esse amplo painel, a atriz Zhang Tao surge na tela, e então Levados pelas Marés centraliza sua narrativa, mas não radicalmente. Aos poucos, deixamos de lado os grandes grupos até nos concentrarmos em dois segmentos. 

Um homem assediador em um ambiente de trabalho. Uma mulher demitida entende que não pode perder o homem que ama, e sai em busca do mesmo pela China mais profunda. A sociedade dividida entre o macro estatal e o micro romântico é um desenho que o cineasta já fez outras vezes, mas aqui parece salientar que cada vez mais estamos distantes do saudável. Levados pelas Marés é uma obra que tece suas costuras através de um experimentalismo muito concentrado no modelo de Estado que conhecemos, que divide as relações por interesse, e que cada tipo de interesse define os futuros dos envolvidos. Parece exótico e distanciado, mas o filme tem uma cadência doce que nos faz embarcar em sua proposta. 

Para o cinéfilo já experimentado em obras como As Montanhas se Separam PlataformaLevados pelas Marés não só seduz mais, como também carrega um montante superior de investigação. A carreira de Jia é repleta de simbolismos, conexões que são feitas entre as obras, um mapa vivo a respeito não apenas das mudanças sócio-políticas da China, como da historicidade entre seus habitantes, do caráter mais amplificado até o mais íntimo. Mas isso não impede um espectador eventual de ter uma primeira imersão nessa obra específica, para então aproximar-se de um cineasta que sempre renova seus votos com uma ótica espelhada, entre os seres e seus desejos. 

Conforme o filme tenta ler a personagem vivida por Tao, que busca esse amor de maneira incessante sem medir esforços, também nos aproximamos da maneira gelada com que o mapa das relações humanas acabou se tornando hoje. O mundo de Levados pelas Marés também é um lugar onde as pessoas se comunicam com robôs, onde a inteligẽncia artificial é uma realidade inerente e onde o pessoal está sendo trocado por máquinas. Essa é a denúncia recorrente de Jia Zhang-Ke, um homem que já foi homenageado por Walter Salles em filme (O Homem de Fenyang, que está voltando aos cinemas por ocasião dessa estreia), e que não perde suas principais inquietações no próprio modo de filmar. 

Ao abrir mão dos amplos espaços capturados do início, com a massa humana sendo colocada a bordo de uma viagem rumo a um amor perdido, e com isso abrir mão das cidades para a grandeza do campo, Jia vai além de um apelo. Ele aponta sua câmera para uma reflexão que está sendo contada pela lente, como o grande cineasta que é. Sua grandiosidade não é abandonada, ela apenas é substituída por um lugar menos embrutecido, ainda que a ele também esteja ausente o afeto e a necessidade de conexão verdadeira. O final feliz romântico talvez não seja uma possibilidade dentro do capitalismo, mas com um pouco de esforço ainda teremos condição de salvar a nós mesmos. 

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