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Filhos: thriller escandinavo parte da Sociologia para falar de revanche

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Bertolt Brecht (1898-1956) inflamou composturas ao dizer: “Tão violentas quantos as águas de um rio que tudo arrastam são as margens que as cerceiam”. Metáfora melhor para o sistema prisional não há. A fabricação de bestas feras onde deveria haver a prática de acolhimento correcional é o tema de Filhos (“Vogter”), thriller escandinavo que parte da Sociologia para falar de revanche. 

Em Filhos tem discussões sobre sexismo, sobre xenofobia e sobre determinismo em seu roteiro, mas as rédeas são levadas por um eixo de melodrama mesclado ao thriller, com tensão em fervura máxima. É assim que o sueco Gustav Möller filma. Basta lembrar do feroz Culpa (2018). Claustrofobia faz parte do cinema dele. No longa que fez sua fama, há sete anos, a ação se limitava a uma escuta telefônica, de onde um policial em fase de decadência, pilotava o auxílio a uma situação de risco usando apenas a palavra. 

Sons (título internacional de seu filme mais recente) prefere silêncios, deixando a saliva na boca de sua protagonista, a agente penitenciária Eva, que arranca da dinamarquesa Sidse Babett Knudsen uma apoteótica atuação. Mesmo com os engasgos dela, Möller segue firme na aposta em se manter a uma só “arena”, um só cenário. A claustrofobia está lá. É sua anfitriã. 

Ele filmou nas instalações da cadeia chamada Vridsløselille, nos arredores de Copenhague. É um cenário frio, tratado em sua direção de arte com assepsia. Foge da linha mais calorosa com que cinemas do mundo todo têm tratado essa ambientação depois do Urso de Ouro atribuído a “César Deve Morrer”, dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, em 2012. Ali, inclusão era o tema. 

Este ano, as três indicações ao Oscar dadas a “Sing Sing”, nas frestas da atuação majestosa de Colman Domingo, coroam a recorrência de memórias de cárceres que se pautam pela volta por cima, pelo pós-detenção. “Fuori”, de Mario Martone, que concorreu à Palma de Ouro de Cannes, em maio, é outra expressão dessa genealogia de feridas que cicatrizam. Já “Filhos” não. Desse achado da Berlinale 2024, que só agora chega ao circuito exibidor, brota pus. 

Louvada Netflix afora por seu desempenho feroz como Birgitte Nyborg na série “Borgen”, Sidse mede 1,68m. Falar de sua altura, aqui, não é deselegância, é necessidade analítica, pois sua estatura é essencial para a construção de Eva. Na ala onde ela opera, dando aula de ioga para presos de periculosidade branda, a retidão dessa servidora pública da Lei faz dela uma gigante, ao molde do coração acolhedor que tem. Algo de podre no reino da Escandinávia vai tirá-la dali – e do eixo. 

Ao notar a chegada de um Maciste chamado Mikkel, detento incontrolável vivido por Sebastian Bull, Eva pede para ser alocada na ala dele. É o setor mais selvagem da penitenciária. É a cloaca do processo civilizatória. Ali, geral é parrudo, espuma ódio e fala bravo. No olhar machista de seus novos colegas, mesmo os que já sofreram xenofobia, a silhueta delicada de Eva parece um pombo entre carcarás. Acontece que Eva rosna. 

Algo do passado, que a gente nunca entende em detalhes, faz Eva desejar que Mikkel sofra e a leva a colaborar com o calvário dele. Até escarrar na comida do cara ela escarra. Tem, como o título sugere, um vetor de maternidade nesse ranço. O que salta aos olhos, na tela, a partir dele, é um fino estudo sobre a Europa dos anos 2020, pelo prisma da intolerância, usando o microcosmo de um xilindró como metonímia e como metáfora. Tem um continente inteiro ali. 
 
Lançado na disputa pelo Urso de Ouro da Berlinale 2024 e exibido aqui na Mostra de São Paulo do ano passado, Filhos se integra ao chamado “cinema penitenciário”, um filão sociológico de tom quase sempre naturalista (ou seja, a seara dramatúrgica reflete nos personagens múltiplas vicissitudes excludentes do meio social). Dali saíram sucessos como o Carandiru (2003), de Hector Babenco (1946-2016). Cada vez que se retoma essa tradição, um debate plural, com pés fincados nas teorias de Michel Foucault (1926-1984) e seu “Vigiar e Punir” (1975), é aberto a fim de entender que sociedade é capaz de moldar uma massa tão ampla de excluídos. 

O diferencial de Möller é tentar entender o que fez (e o que faz) de Eva uma excluída em farda de excludente, uma pária com matrícula no funcionarismo público. A Europa que a gerou está enjaulada em seus próprios parâmetros éticos e mais engaiolada ainda em suas corrupções. A montagem taquicárdica de Rasmus Stensgaard Madsen transforma essa cartografia geográfica e este estudo de personagem num suspense de roer as unhas. 

Catarses existem nele, mas o senso de espetáculo da direção não abafa sua investigação sociológica. Porém, pelo contrário, amplia sua potência. Sidse, certamente, nos deslumbra a cada olhar.

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