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Ponto Oculto, um thriller político cheio de nuances mitológicas

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O ‘efeito Rashomon‘ é uma técnica moldada para determinar uma certa curva cinematográfica cunhada pelo título homônimo, dirigido pelo genial Akira Kurosawa em 1950. Na trama em questão, três personagens se reúnem durante uma tempestade para encarar três visões diferentes sob um mesmo evento, trazendo novas conclusões sobre os fatos e também justaposições de interpretações. Desde então, inúmeros remakes do filme (incluindo o excelente O Último Matador, de Walter Hill) foram feitos, mas a própria estrutura foi sendo submetida a outros roteiros, causando propostas minimamente curiosas. Após um adiamento, chega enfim aos cinemas a produção turca Ponto Oculto, mais um acerto da Pandora Filmes nas estreias do ano, com essa técnica sendo ministrada para disseminar uma costura elegante de paranoia e suspense crescente em torno de um grupo de tipos contemporâneos. 

O filme teve sua estreia na sessão paralela do Festival de Berlim, onde angariou merecidos elogios, e chega até um circuito nacional carente de descobertas revigorantes. Como já tinha dito em textos anteriores, um filme como Ponto Oculto realça dentro da nossa seara de lançamentos um caráter de experimentação de linguagem e de ousadia de representação, mesmo sem inventar a roda; apenas apostando na ambiguidade de temas, nacionalidades e registros cotidianos. Por onde se olha, trata-se de um thriller político cheio de nuances mitológicas, de onde a cadência é estabelecida a partir de algumas viradas verdadeiramente insuspeitas e personagens que, embora não criem um mosaico surreal, se conectam ao espectador justamente ao apresentar tamanha humanidade a suas escorregadelas.

Em três quadros de apresentação, acompanhamos a equipe de um documentário alemão interessada em uma vila curda, que esbarra com uma espécie de agentes secretos, e juntos eles se aproximam de uma força desconhecida que paira sobre as próximas decisões. Ponto Oculto definitivamente não é uma produção que abra mão de sua atenção; ainda assim, não convém dispersar dos acontecimentos, e isso em tempos de público naturalmente ligados no poder da imagem, pode gerar algum incômodo inicial. Isso porque a diretora e autora Ayşe Polat tem mais certeza do que pode conseguir a longo prazo, seduzindo o espectador para uma conexão menos vazia. Nesse sentido, o filme não se apresenta em menor escala do que intrigante a cada nova descarga de possibilidades, a partir do que seria um tipo de ‘fim do primeiro ato’ – desconcertante. 

O que poderia ser visto como uma tentativa sensacionalista de conseguir adesão do público, acaba sendo percebida pelo que de fato é: uma alegoria pouco sutil a respeito das manobras políticas, da violência do Estado em vista do painel social menos abastado, e uma colocação respeitosa de tradições e fundamentos locais. Em meio ao suspense urdido a pincel, Ponto Oculto encontra na agudeza de outra estreia de 2025, A Semente do Fruto Sagrado, uma nova forma de observar o rigor bélico masculino na sobreposição de uma fragilidade feminina em constante desconstrução. Aqui ainda de maneira mais arrepiante, porque separa um homem de mais de 40 anos e uma criança de menos de 10, apartados por crenças em forças igualmente invisíveis, mas que ambas precisam de fé e algum desespero para se fazerem reconhecer. 

Indo no avanço do roteiro de Polat, não importa muito se todas as amarras de suas situações estejam bem enganchadas – ou não. Vencedora do Oscar alemão de melhor direção e roteiro por Ponto Oculto, também esses prêmios obedecem a excelência do que Polat consegue com suas imagens, o grau de tensão que ela instaura no ecrã e na força impenetrável com que as ações mostradas acabam por desencadear motes muito retos na construção de cada ‘após’ em cena. E depende da relação citada anteriormente entre os personagens de Ahmet Varli e Çağla Yurga a necessidade de entrega do espectador, e isso é construído de maneira bastante acertada. Existe amor, entrega, mas também medo e angústia, que dois atores em idades opostas apresentam em igual destemor. 

É um conjunto de elementos que tornam a experiência de Ponto Oculto muito mais prazerosa e complexa do que poderíamos imaginar, a princípio. Compondo um ramo de caminhos que incluem um bem-vindo e assumido desconhecimento, sua autora busca sempre o toque através do sensível dentro de um mundo em ruínas pelo que não se controla. Forças de poder, ou do obscurantismo, tendem a apagar traços do que é humano em torno de suas ações, mas Polat é sábia em colocar-nos como testemunhas de um tempo que continua a ser trucidado pela falta de ordem gerada por forças ancestrais. E não, não estou falando do sobrenatural, mas sim do que deveria ser considerado como tal, como o machismo, a barbárie despropositada, a síndrome dos muitos pequenos poderes e a tirania tratada como normal. Isso sim, tudo muito assustador e ainda desconhecido. 

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