- Publicidade -

Um Lobo Entre Os Cisnes é o ‘Karate Kid’ do balé

Publicado em:

No tempo em que Hollywood quis ser moderna, entre 1967 e 1981, desgarrando-se de vícios impostos por sua natureza capitalista ao sublimar anseios artísticos pela celebração dos corpos marginalizados, surgiu um titã, hoje pouco valorizado, que poderia chamar Um Lobo Entre os Cisnes de seu. John G. Avildsen (1935-2017) é esse colosso. Seus dois maiores sucessos dão a medida da analogia com o caudaloso filme brasileiro de Helena Varvaki e Marcos Schechtman: Karate Kid (1984) e Rocky, Um Lutador (1976). Esse último, aliás, rendeu a ele um Oscar. 

À exceção de um empurrão dado por um aspirante a bailarino em seu amargo mentor, Um Lobo Entre os Cisnes não tem sequências de batalha corporal. Suas lutas são contra a exclusão social, em prol da superação. As de Avilsden também, como nos lembra “Meu Mestre, Minha Vida” (“Lean On Me”, 1989), com Morgan Freeman, e “O Poder de um Jovem” (1992), com um Stephen Dorff ainda apolíneo. Só que em algum momento, o realizador americano deu socos.    

Deu chute também. Fez dos esportes de luta seu objeto. Raramente ele é associado aos pilares da chamada Nova Hollywood, como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Elaine May, Steven Spielberg, Brian De Palma, George Lucas. Contudo, gravitou por céus tão politizados quanto o dessa turma, a julgar por “Sonhos do Passado” (“Save The Tiger”, 1973), que rendeu um Oscar a Jack Lemmon (1925-2001). 

Avildsen desnudou as vergonhas da América do mesmo jeitinho que fizeram cineastas com aura de cult dos anos 1970, mas não figura no mesmo Panteão onde estão essas/es colegas por ser associado a uma perspectiva de “contrarreforma” no turbilhão revisionista daquela década. Seus heróis não eram rebeldes. A angústia deles é decorrente de uma pirâmide econômica pavimentada sobre a desigualdade, na qual a pobreza é um ringue que faz da humilhação um dos juízes de seu combate. 

No drama de superação pilotado por Varvaki e Schechtman a situação é a mesma, só que com coloridos latino-americanos, aquecidos pela fotografia de Pedro Faerstein. Seu requinte se faz notar no uso (quente) da cor e nos enquadramentos nunca ortodoxos.     

Camila Agustini, autora do roteiro, parte (certeira) de fatos reais em seu script e aporta sua escaleta de ações num formato universalíssimo de sagas de tutor e aprendiz, que vai de “Ao Mestre, Com Carinho” (“To Sir, With Love”, de 1967) até “Tudo Que Aprendemos Juntos” (2015), com Lázaro Ramos. Muitos países abriram veios em sua produção cinematográfica para enredos assim, mas nenhum deles supera a relação entre Sr. Miyagi e Daniel San. Esse aí quem dirigiu foi nosso supracitado Avildsen. Nas rubricas de Camila, Varvaki e Schechtman garimpam as jazidas que esse artesão abriu, lá entre a década de 1970 (com Rocky Balboa) e a Era Ploc, com os três primeiros exemplares da franquia “Karate Kid”, com Ralph Macchio. 

O Sr. Miyagi de Um Lobo Entre os Cisnes é o coreógrafo Dino Carrera, esteta do movimento, dançarino que jamais simplificava o “dois pra lá e dois para cá”, reduzindo a um exercício trivial, encarando a dança como um espaço de pesquisa e descoberta. A inquietude que trouxe consigo de Cuba, de onde partiu para não se submeter a regras (e a fuzis), fez com que enxergasse um diamante na pedra bruta chamada Thiago Soares, seu Karate Kid.

Sem um pau pra dar no gato, em meio ao regime de bolso vazio da Vila Isabel dos anos 1990, esse Daniel San de subúrbio enxergava na falta de grana seu Cobra Kai e extravasava a dureza do dia a dia dançando no viaduto de Madureira. Não se falava em Passinho na época, mas a rádio RPC já trombeteava seu “Big Mix” pelo rádio e engatava o Rio todo no tchotchomere da Furacão 2000. A suavidade de seu breakdance impressionou seu instrutor hip-hop, que convence Thiago a estudar em uma escola profissional de balé, onde terá a oportunidade de ganhar uma bolsa de estudos. 

Imbuído dos preconceitos sexistas da geração noventista, o rapaz começa a treinar em segredo da tia (com quem vive) e custa a se submeter às exigências que o ofício de bailar impõe até que tromba com Dino. Com ele, sua impostura não tem lugar no salão. Tal qual Miyagi (vivido por Pat Morita) fazia no clássico da “Sessão da Tarde” de Avildsen, nosso homem de Havana põe Thiago para “limpar o assoalho”, suando a malha collant e furando buraco nas sapatilhas até decolar para o infinito da perfeição.  

Dina Salem Levy dá o toque de nostalgia preciso na direção de arte que recria os anos 1990 e o início dos 2000, em meio ao périplo que leva Thiago a subir os degraus da Igreja da Penha até rodopiar pelos palcos mais disputados do Ballet europeu e americano. O esmero para que o Passado se revivifique sem naftalinas e sem estilizações ganha sentido na forma como Camila, em sua escrita, valoriza elementos de época na construção das falas que Matheus Abreu (em rigorosa atuação) e o Mastroianni argentino Darío Grandinetti (de “Fale com Ela”) esgrimam. 

Sob a produção criativa do escritor e cineasta mexicano Guillermo Arriaga (roteirista de “Babel” e de “Três Enterros”), Um Lobo Entre os Cisnes cisca em torno da faiscante tensão que esses dois atores – sob uma direção orgânica – estrutura. Matheus tem a fúria dos bad boys que iam pra Madureira de 780 (extinta linha da empresa de ônibus CTC) ou de trem dançar no viaduto do bairro. Grandinetti sublinha seu fraseado com a dor do desterritorializado, que saiu de Cuba sem deixar que a ginga da terra de Celia Cruz, Compay Segundo e Francisco Fellove pra trás. 

Numa fala daquelas de a gente engasgar com a pipoca e chorar abandonos, Dino moleja seu danzón no cha-cha-chá de um LP antigo, perfumado a rum e a fumaça de charuto, a fim de mostrar para Thiago que a música é seu lar, em Havana ou na Urca. Palavras não são didáticas nessa sequência, nem em qualquer outra que Camila escreve. Tudo é entrelinha, é pontilhado. 

Não é um filme de respostas prontas e moldes dados. Não algoritmo. A trajetória do Thiago da vida real – que virou estrela de prestígio internacional – tem perseverança de cinema, um brilho de “Tela Quente”, mas é uma travessia ímpar, sem módulos. Como disse o Rocky Balboa que oscarizou Avildsen: “A luta só acaba quando o gongo soa”. O gongo do subúrbio não soou. Ele vive no gerúndio. Thiago Soares é um gerúndio. É um processo de torna-se lenda contínua. Dino foi um verbo de ação nessa gramática, que Varvaki e Schechtman aplicam no plano do cinema, com virulência. Toda a abordagem da guerra de Dino contra a Aids aterra o que há de melodrama na trama num chão cru e seco de realismo.   

Atentos a bons satélites que assegurem dinamismo a seus protagonistas, Varvaki e Schechtman apostam (bem) em Margarida Vila-Nova, no papel da diretora da escola em que Thiago se lança para o desafio de vencer determinismos. Acertam também na convocação do dínamo Alan Rocha (Ainda Estou Aqui) como Julio, o ás do hip-hop que convence o Karate Kid de Madureira a encarar o Lago dos Cisnes como uma profissão. 

P.s.: Tem um documentário genial sobre Avildsen, chamado King of the Underdogs, lançado por Derek Wayne Johnson em 2017, que complementa Um Lobo Entre os Cisnes muito bem.  

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -