- Publicidade -

A Melhor Mãe Do Mundo é apoteose para Shirley Cruz e os satélites de Anna Muylaert

Publicado em:

Patuá humano da cineasta Anna Muylaert desde uma participação relâmpago em “É Proibido Fumar” (2009), o quadrinista e escritor Lourenço Mutarelli assegura à narrativa neorrealista de “A Melhor Mãe Do Mundo” um tempero cult – palavrinha que o inquieta. Numa entrevista de uns 20 anos atrás, o mais potente criador de HQs do Brasil (vide “A Confluência da Forquilha” e “A Soma de Tudo”) disse “Não entendo o que querem dizer quando me chamam de ‘cult’, mas deve ser melhor do que ser chamado de decadente”. Aí que tá… objeto de culto, o autor de “O Cheiro do Ralo” encarna a decadência no novo filme da realizadora de “Durval Discos” (2002).

Numa celebração das resiliências femininas, seu personagem, o frentista Reginaldo, é há um só tempo esteio e escombro (daquele que causa tétano) na vida de Gal, uma catadora de material reciclável que abre o longa-metragem com o rosto arroxeado. Ela não caiu da escada, nem deu com a cara na maçaneta da porta, ao contrário das desculpas sexistas mais comuns usadas nos inquéritos de violência doméstica. Um tabefe do namorado, o segurança Leandro, deixou roxo um olho que fita suas crianças com aconchego e pertença.        

Apresentada ao mundo no início de fevereiro, na Berlinale, na Alemanha, Gal eleva Shirley Cruz no Panteão das estrelas brasileiras que traduziram a força das mulheres deste país nas telas do planisfério cinéfilo. No rol das divas sul-americanas que incandesceram premiações europeias, ela pode ser colocada lado a lado a Norma Aleandro, Fernanda Montenegro, Paulina García, Ana Beatriz Nogueira, Marcélia Cartaxo, Sandra Corveloni, Ana Brun, Catalina Sandino Moreno, Fernanda Torres. Plena em cada quadro, numa atuação em estado de graça, ela foi premiada nas andanças de “A Melhor Mãe Do Mundo” pelo Festival de Guadalajara, no México, e no Cine PE, no Recife, onde a produção ganhou a láurea de Melhor Filme. 

Enquanto corria mundos à frente de “Alfazema” (2019), um dos títulos de maior vigor do curta-metragem nacional, Shirley brilhou em novela (como Gláucia, em “Bom Sucesso”) e deu o ar de seu talento no único filme brasileiro (ainda que de diretor americano, Paxton Winters) a ganhar a Concha de Ouro de San Sebastián, “Pacificado”. Credenciais (e vigor dramático) ela tinha de sobra para encarar o papel principal de “A Melhor Mãe do Mundo”, que extraiu lágrimas e sorrisos do Festival de Berlim, fora da briga pelo Urso de Ouro. 

O que Shirley entrega, no regresso da realizadora de “O Clube das Mulheres de Negócios” (2024) à telona, é uma composição performática visceral, que ultrapassa o limite da palavra, num ferramental físico de gestos que impressiona plateias. Faz uma década de Muylaert teve a indústria audiovisual pelo que fez (de beeeeem parecido) com Regina Casé e Camila Mardila no seminal “Que Horas Ela Volta?”. Um caminho parecido se faz notar com o novo candidato a êxito popular da cineasta egressa de São Paulo, cidade que ganha novos contornos com “A Melhor Mãe Do Mundo”. Berlim olhou para essa geografia com mira a Roma do Neorrealismo.

Faz tempo que a Berlinale abre apoteoses para nossas intérpretes, vide Carla Ribas (“A Casa de Alice”), Maria Ribeiro (“Como Nossos Pais”) e Denise Weinberg em “O Último Azul”. Shirley se junta agora a esse time, num trabalho de composição doce, sem ações bruscas, que lembra a interpretação da cantora congolesa Véro Tshanda Beya Mputu em “Félicité” (Grande Prêmio do Júri no evento alemão, em 2017). Sua cumplicidade com as demais atrizes em cena (sobretudo com Katiuscia Canoro) se faz notar por engasgos e mágoas represadas em silêncios. 
Amparada na fotografia de Lílis Soares, Muylaert constrói uma mistura de “Noites de Cabíria” com “O Cortiço”. Os trejeitos de arlequina de Giulietta Masina saltam à cabeça quando Gal é vista numa delegacia, num apelo à Lei Maria da Penha, a fim de relatar o sopapo que tomou de seu amado, o já citado Leandro vivido por um Seu Jorge que ruge a contingencia do machismo. 

O guarda de farda vivido pelo canário belga da MPB vira uma besta-fera ao se encher de cerveja. No empenho para fugir dele e de suas carraspanas selvagens, Gal coloca seus filhos pequenos em sua carroça e atravessa a cidade de São Paulo. Pelo caminho, enfrenta os perigos das ruas enquanto tenta convencer as crianças, Rihanna e Benin, de que estão vivendo uma aventura em família. 

É difícil não pensar em “A Vida É Bela” (1998), de Roberto Benigni, entre as referências cinéfilas que brotam de nossa memória afetiva frente ao que Muylaert nos dá. A diferença é que os caminhos percorridos por essa realizadora não dão espaço ao estratagema pícaro que o Didi Mocó italiano explorava tão bem. No filme da cineasta de uma SP corinthiana sobrepõem-se a aspereza e a desilusão. Bem Cabíria mesmo…

Nesse “After Hours” do amor materno, frenético com o “Depois de Horas” (1985) de Scorsese, todo mundo dá pernada em Gal. O amigão de todas as horas vivido por Mutarelli parece ser uma exceção. Contudo a pele de cordeiro veste bem em muito lobo. A sociedade que nos cerca tem muitos, assim como tem muitas Gals. Shirley celebra todas elas, em sua encantadora atuação. 

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -