- Publicidade -

“Cartografia Incógnita” no Paço Imperial

Publicado em:

Em 1882, escrevia o Diário do Brazil, segundo caderno, na página 2:“Deu o governo geral permissão para seguirem esses filhos das selvas para a Europa? Será uma especulação, como qualquer outra, para se ganhar dinheiro pela exposição dos mesmos? Pode-se dispor da liberdade dessas tristes creaturas, que lá vão sujeitar-se, sabe Deus como, a saciar o gosto de observação dos estrangeiros? Voltarão elles ao seu Aldeamento no Rio-Doce, ou morrerão, coitados, de nostalgia? Pobre Brazil e pobre província do Espirito-Santo! Se até aqui passamos por macacos, se há pouco chegados da Europa estrangeiros, vieram persuadidos que esta província era somente composta de tribus indigenas, por na côrte terem sidos expostos os botocudos na Exposição, que conceito farão de nós, quando nos theatros, talvez em exhibição, forem apresentados os nossos incolas? Que somos todos botocudos […]. E os pobres indios morrendo, porque a estação na Europa é fria, ainda seus ossos serão vendidos para estudos nas academias e em gabinetes particulares!…

Consta que, na Exposição Etnográfica de 1882, realizada no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, estava prevista a exibição um zoológico humano. O trecho da reportagem acima denuncia maus tratos a um grupo de indígenas da região do Rio Doce que foram gentilmente oferecidos pelo então governador do Espírito Santo, Hercolano Marcos Inglez de Souza, para serem exibidos na exposição. No entanto, não há registros de que tal exibição tenha de fato ocorrido, embora os índios tenham vindo para o Rio de Janeiro e, depois, foram levados à Europa por um membro da família Barata Ribeiro.

Segundo os registros de Voluspa Jarpa, a notícia da chegada ao Rio de Janeiro do grupo de seis indígenas alvoroçou a cidade de tal modo que foi preciso levá-los para a Quinta da Boa Vista, para afastá-los da curiosidade geral. Na Quinta, foram fotografados por Marc Ferrez, o fotógrafo mais importante da época. 

Hoje, o que resta deles é um álbum, cujas fotografias integram a mostra “Cartografia Incógnita”, da artista chilena Voluspa Jarpa – que nos defronta com os zoológicos humanos que exibiram, entre 1858 e 1958, exemplares humanos de povos ditos “exóticos” em várias  Exposições, realizadas em várias capitais européias e também em outras cidades do continente.

As célebres Exposições Internacionais tinham, por objetivo, anunciar o progresso da indústria de cada país. Em contraponto, ofereciam ao público o espetáculo dos chamados “zoológicos humanos”: pessoas de distintas origens e de pele escura ou amarela, que eram apresentadas em cenários compostos com animais e plantas nativas, de modo a emular o que era considerado “a vida selvagem”.

Voluspa Jarpa pesquisa documentos classificados dos Estados Unidos sobre a América Latina há vários anos, a partir dos quais a artista tem criado obras profundas e contundentes. Em meio a essas pesquisas, um dia se deparou com os zoológicos humanos – e logo farejou algumas nuances interessantes: por que exibir seres humanos, originários de outras civilizações e culturas, lado a lado com as grandes invenções da modernidade que cada país se orgulhava em apresentar?

Seguindo seu instinto, a artista cruzou várias análises: quem eram os seres exibidos? De onde vinham e onde seriam exibidos à curiosidade alheia? E que relação teriam com a dita modernidade? E por que atraíam tanto a atenção do público? Mais ainda, como se prestavam a esse papel?

– Muitos foram enganados, outros foram vítimas de falsas contratações. Nas exibições, figuravam em cenários, ao lado de animais e plantas, ora seminus, ora ostentando roupas ou artefatos, como lanças ou enfeites – explica a artista.

Os personagens passavam por pesagem e por uma série de medições, que avaliavam, por exemplo, o tamanho dos crânios. O olhar da ciência de então, na falta de informações substanciais, decretava toda sorte de veredictos: falta de inteligência, dificuldade de comunicação (só falavam suas línguas), não percebiam nada ao seu redor… A cada exibição, proliferavam as mais insólitas teorias que o mundo dito científico era capaz de produzir sobre seres humanos cuja natureza simplesmente não estava ao alcance dos estudiosos de plantão.

Voluspa Jarpa avalia que 400 milhões de pessoas, no mundo, visitaram esses zoológicos humanos. Na Grande Exposição de Paris, que coincidiu com a inauguração da Torre Eiffel, o zoológico humano foi instalado na base da própria Torre!

Segundo a artista, esta voracidade em expor pessoas que eram apresentadas como representantes de algum atraso, reforçava a suposta superioridade da dita civilização ocidental: os brancos arianos inteligentes, contrastados com as peles de cores distintas dos indivíduos calados pela perplexidade, pelos maus tratos ou pelas condições desumanas a que eram submetidos nessas exibições. 

Enquanto se debruçava sobre esses acontecimentos, Voluspa resolveu investigar os fluxos migratórios que aconteceram no mundo e compará-los ao ideário propagado pelas exibições em zoológicos humanos – que, segundo suas conclusões, formatou as bases do racismo.

Por meio de um mapa atualizado que registra e ajusta o real tamanho dos continentes, é possível observar, na exposição “Cartografia Incógnita”, as rotas percorridas pelas pessoas exibidas em vários países do mundo – e, ao mesmo tempo, acompanhar os fluxos migratórios de populações pobres da Europa, que buscavam melhores condições de vida nas Américas, na mesma época.

SERVIÇO: até 16 de novembro / Dias/Horários: terça a domingo e feriados, das 12h às 18h / Local: Centro Cultural do Patrimônio Paço Imperial Praça Quinze de Novembro, 48, Centro

Rota Cult
Rota Cult
Redação do site E-mail: contato@rotacult.com.br

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -