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 A Meia-Irmã Feia faz releitura de Cinderela, com toques de terror

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O circuito de cinema e a força das circunstâncias promovem uns eventos curiosos de vez em quando. Vide o exemplo das estreias essa semana de Frankenstein de Guillermo Del Toro, e de A Meia-Irmã Feia, dirigido por Emilie Blichfeldt. Enquanto o primeiro é uma cópia cheia de fidelidade narrativa ao livro de Mary Shelley e as implicações masculinas e paternais à sua análise fabular, o segundo é co-produção escandinava (Noruega, Dinamarca, Suécia) sobre uma história que teve inúmeras versões oficiais, remetendo à China antiga, ao francês Charles Serrault e aos míticos alemães Irmãos Grimm. Em ‘Cinderela’, a observação menos infanto-juvenil mostra a busca por aprovação feminina em eterna competição diante de uma possibilidade de amor romântico. Em 2025, tentando reimaginar essa fábula com o intuito de ressignificar o que não existia de feminismo dentro dele, dando protagonismo à uma célebre coadjuvante, a saída para um longa foi seguir a linha macabra.

Muito mais do que um filme de horror (e que não deixa de sê-lo), A Meia-Irmã Feia precisa ser olhado sob o viés do gótico, outro ponto em comum com o filme de Del Toro. Mas enquanto lá o recorte de gênero não ocupa sua porção totalitária, aqui temos um flerte com essa vertente durante toda a duração, enquanto tenta relançar uma nova categorização para cada um dos personagens em cena. A ideia não é apenas reavivar o conto clássico para uma nova geração diante de um gênero que vem revisitando-os quase em esquema de paródias desprovidas de esmero, mas tornar esse olhar mais crítico sobre o que são os valores originais. Com isso, ornar o título com uma saída que remete ao que fizeram Anna Biller em A Bruxa do Amor e Sofia Coppola em Maria Antonieta

Ao promover uma anarquia saudável ao cânone, realçando o que ele tem de mais anacrônico justamente para amputar tais inconveniências, fazendo nascer novo sentido às plateias de valores renovados, A Meia-Irmã Feia não tentar deturpar o conto original, porém promover inclusive com bom humor essa experimentação. O resultado é uma produção muito sofisticada, que saiu do último Festival de Berlim com a consagração que a busca anterior pelo que ele tinha a dizer extrapolou os trailers e posters, por contar com essa salada com temperos arriscados. Dentre o que se vá, tudo é explícito, da violência ao ato sexual, com planos assustadores e inesperados inclusive para grupos experimentados em ousadia. Blichfeldt, certamente, mostra cena a cena que a diversão é garantida, mas que está promovendo picardia de alto gabarito. 

A figura central já não é mais a dita gata borralheira (aqui, Agnes), e sim uma das irmãs postiças que ela ganhou após a suspeita morte depois, logo após o enlace com a nova esposa. Elvira não é necessariamente plasticamente tão padronizada quanto a nova parenta, mas uma das coisas que o filme deixa rasgado é que a busca pela perfeição é cruel com quem o promove, e também com quem sucumbe a ela. A curto prazo, promove uma injusta competição feminina que não promove nenhum debate particularizado; a longo, não carrega nada além de destruição e morte, vide A SubstânciaA Meia-Irmã Feia parece divertir-se com o estado das coisas, quando na verdade promove a reflexão através de uma leitura aprofundada das bases da obra, até desconstruir os próprios tipos, que saem de suas condições originais para ganhar relevos de maior suculência. 

Todo o excesso do filme, em suas incursões pelo agudo imagético, não são apenas propositais, como fundamentais para que a sua ideia seja passada sem atravessar outros lugares. O tom não é de paródia, mas o de acessar esses desmedidos jogos estéticos para além do que o filme denuncia entre as relações femininas, porque isso esbarrou no campo da imagem em A Meia-Irmã Feia. Por isso é importante dizer que esse não é um “filme de horror” tradicional, e isso passa longe de ser um dado descartável; a produção está encampando, de muitas formas, sua discussão na narrativa também no que é posto a partir de seu visual. E isso pode ser notado tanto no que diz respeito a violência gráfica, quanto aos objetos de criação dessa mesma violência menos óbvia, como materiais medievais utilizados em certos consultórios (que no filme é um dentista, mas que a representação daquele material tem ligação direta com a ginecologia). 

É como se Blichfeldt estivesse advogando contra a dor, física ou psicológica, proporcionada contra o feminino, ainda que causado por ele. A Meia-Irmã Feia é um título que causa horror pelo que mostra, pelos que não mostra e pelo que não imaginávamos ser também é um horror. Por trás da fábula original e mesmo por trás dessa imaginativa versão, o que conta é a sensatez com que sua autora está disposta a avançar em um debate aberto sobre os sacrifícios feitos em nome do outro, nunca de si mesmas. Que o visual ainda forneça motivos para encantamento e apavoramento, às vezes no mesmo plano, é uma prova de que Blichfeldt estreou em longa com os dois pés na porta, e com uma voz que não precisa ser defendida por todas as diretoras, mas cuja autonomia aqui encontra o amálgama da beleza com o que se é feito para consegui-la, tornando-se uma assustadora coisa só. 

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