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“UM JULGAMENTO – depois do Inimigo do Povo”: Transparências do Mal numa peça colossal

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Quem não é não se esconde… cantava o Funk “O Bonde do Rinoceronte… ao evocar um saber popular das periferias cariocas segundo o qual quem não deve não teme… um pouco como é a situação do Dr. Thomas Stockmann. O personagem criado em 1882 pelo norueguês Henrik Ibsen (1828–1906) é a tradução ficcional da hashtag #tragoverdades. A principal delas: “A verdade acabou”. 

"UM JULGAMENTO

Acabou no verbo, na letra, na retórica…, mas onde dá tiro, onde agem milícias, onde falta comida, onde a água não tem encanamento, o real não mente. Fede, sangra, dói, mata, polui. Para que ele ganhe discurso, no tempo das fake news, Wagner Moura fez dele teatro. E o faz numa interpretação taquicardia, que alarma plateias. 

Stockmann é o personagem que marca a volta do baiano de Rodelas aos palcos depois de um hiato de quase duas décadas. O doutor Stockmann foi tomado emprestado de Ibsen para gerar uma dramaturgia nova brasileira, que foi batizada (com caixa alta) de “UM JULGAMENTO – depois do Inimigo do Povo”. A peça nasce como escrita, mas se materializa numa capilarização entre gesto, performance, mimese de tribunal e vídeo, com todo os hibridismos característicos de sua diretora, Christiane Jatahy.

É a natureza da encenadora de “Corte Seco” (2009) e “A Falta Que Nos Move” (2005) tensionar fronteiras entre cena e tela, gesto e engasgo, saliva e discurso, realidade e representação. No mesmo tempo em que o cinema, via “Dogville”, de Lars von Trier, lá em 2003, adentrava por Thornton Wilder (“Nossa Cidade”) e Brecht (“O Casamento do Pequeno Burguês”), Jatahy se empapuçava do que havia de mais pós-moderno nas reflexões audiovisuais sobre simulacro e simulação. Avançou (sobremaneira) o que (nas artes visuais) Peter Greenaway esboçou no fim dos anos 1980 e 90 (com “O Livro de Cabaceira”). 

Em “UM JULGAMENTO”, Ela (Christiane Jatahy), o Wagner que hoje delicia telas mundo afora com o crocante “O Agente Secreto” e Lucas Paraizo (roteirista das séries “Sob Pressão” e “Os Outros”) delinearam um “What if…” (o que aconteceria se…) a partir de “O Inimigo do Povo” escrito por Ibsen no século XIX. E se o Dr. Stockmann se insurgisse contra a chancela de subversivo que o conferiram, em prol da paz na ordem vigente? É daí que nasce “UM JULGAMENTO”.

Em sua esfera ciborgue, com suas próteses em vídeo que rebobinam fatos de outrora e abrem hipertextos para maquinações corruptas paralelas, a engenharia de Jatahy lembra a montagem nacional (inesquecível) de “Os Sete Afluentes do Rio Ota”, do canadense Robert Lepage, feita sob a direção de Monique Gardenberg, no início dos anos 2000. Dilatavam-se tempos e geografias, com fraturas no palco impostas por vídeos que abriam memórias. São dispositivos de inventar cena naquilo que é digital, naquilo que é imagem filmada, na videoarte. 

Em “UM JULGAMENTO”, as provas são apresentadas à corte por vídeo ao mesmo tempo em que câmeras flagram uma expansão da caixa cênica, uma vez que vemos um Stockmann em fúria a sair dela a bufar, palco adentro. É um traço da identidade de Jatahy. Um indício de que num mundo pós-verdade, onde tudo é performance: rua é palco; esquina é palco; foyer é palco. O diferencial dessa dramaturgia nova é ela mostrar que peito também é palco. 

Existe uma encenação de problemas concretos de Stockmann. Existem, por outro lado, uma tragédia tebana que se passa em seu coração, após a perda de sua companheira, morta em decorrência de problemas cardíacos, sob o efeito de ansiolíticos e remédios para amortecer a depressão. Nessa Tebas, não há oráculos. Os deuses já não se interessam por nós. Só a Lei.              

Sem ela ninguém é livre, a julgar pela tese de Montesquieu: “Liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”. O maior anseio de Stockmann é se libertar do fardo de uma culpa que não é sua. Ele apenas quis libertar seus conterrâneos da ignorância. Deu o fogo (da lucidez) a suas e a seus compatriotas. Resta-lhe penar sob o ataque dos abutres.  

Tão logo os três sinais tocam e as luzes da encenação se engatilham, Wagner entra em cena, dá “Boa noite!” e, solenemente, compactua com a plateia as dinâmicas. Uma delas é o fato de que alguns espectadores, que aceitaram receber pulseiras do lado de fora do Teatro II do CCBB, serão escolhidos, por números, e vão compor o júri. A dinâmica mais importante vem de uma fala de Ibsen, ligado ao fato de que a verdade morreu. Portanto, longa vida à verdade. Wagner insiste: “Poderia ser um filme. Mas a vida não é um filme. Isso aqui é teatro!”.

O que ele, Paraizo e Jatahy arquitetaram foi um estudo sobre como os fatos driblam as versões que se contam dele. Por isso, tanto faz (ou não) se você não se convencer dos argumentos de Stockmann. O que vale é o embate por seu direito de trazê-los à tona e a certeza de que laudo pericial algum sobre a contaminação de um rio fede como a água que contaminaram.    

Assim, saímos da 1882 do cogito ibseniano e caímos no ano de 2025, num Brasil pós-covid e pós-Bolsonaro, onde Stockmann (Wagner, numa colossal imolação em cena) busca por veios de reparação para sua dignidade. Não pense em honra. Essa é uma palavra que, na História, serviu mais para justificar crimes de ódio do que para harmonizar vivências. Dignidade é balanço. 

Logo, esse médico maculado em sua reputação almeja recuperar sua credibilidade diante de um júri formado pelo público, e se submete a um veredito. Em “UM JULGAMENTO”, ele tratava de doentes numa Estação Balneária no interior do país. Flagrou contaminação nas reservas hídricas locais e denunciou o corrido. Foi tachado de charlatão e de irresponsável por isso. 

Ao lado de sua filha, Petra Stockmann (vivida por Julia Bernat, parceira recorrente de Jatahy), ele pede uma retratação pública e uma nova chance de se defender. O espetáculo tem como voz de acusação o irmão do protagonista, Peter Stockmann, vivido por um Danilo Grangheia mefistofélico, de humor cru. Ex-prefeito da cidade, ele é o representante das autoridades locais.

O que se inicia como corte, transforma-se em uma disputa familiar, revelando os conflitos por trás da rivalidade entre os irmãos. Revelam-se ainda traumas de Stockmann, relativos à perda de sua parceira. Revela-se também o machismo imperdoável da sociedade que elegeu Peter. 

Muitos filmes são citados, em especial “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, que empresta suas guelras também a “O Agente Secreto”, onde Wagner (também) está apoteótico. Contudo, o longa-metragem que mais baliza a forma como Jatahy encena não é nomeado. Trata-se do ganhador da Palma de Ouro de 2023: “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet. Nele, “culpado” ou “inocente” são palavras gastas. O uso abusivo as desgastou. 

É o que escreveu Jean Baudrillard no seminal livro “A Transparência do Mal”: nada, na prática da vida em sociedade, desaparece pela escassez, mas, sim, pelo excesso. Mentiu-se demais no Brasil de Peter Stockmann. Já seu irmão, o réu, foi excessivamente humano. Essa demasia… essa desmesura… finca seus pés num solo tão milenar quanto o de teatro… o solo da certeza. 

De fato, é certo que “UM JULGAMENTO” é “O” acontecimento teatral de 2025, pela provocação e pela forma. Pela engenharia sonora que faz o Teatro II do CCBB implodir. Pelo modo em que Wagner renova nossa fé nos sagrados poderes da composição teatral.      

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