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Morra, Amor: Lynne Ramsay convida o espectador a entrar em uma espiral doentia e exagerada

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Lynne Ramsay não é uma cineasta que preze pela sutileza. Tematicamente aguda, sua filmografia é assolada de imagens fortes, de cores berrantes, de situações cuja dramaticidade não se coloca de forma tímida. Como uma ópera fora de tom, seus filmes não se baseiam no caráter observacional; ela convida o espectador a entrar em uma espiral doentia e exagerada. De alguma maneira, faltava a ela que o teor fosse empregado no lugar apropriado, para que seus predicados não se fundissem sem assolar o projeto como um todo. Morra, Amor, a adaptação do romance de Ariana Harwicz pela diretora do cansativo Precisamos Falar Sobre Kevin, é, enfim, a forma de sua diretora encontrar símbolos e provocações dentro de um universo familiar, ao carregar seus personagens a um inferno reconhecível – e que arde em cada um de seus integrantes de uma maneira diferente. 

Apesar do campo coletivo, livro e filme centram seu olhar em Grace, uma mulher prestes a ruir. Ela sabe que está no limite de todas as formas, mas a alguém como ela não é permitido o erro, a fuga ou declarar-se derrotada/culpada. Grace é jovem, linda, saudável, é escritora, ou seja, trabalha com arte. No papel, a vida de Grace deveria ser considerada perfeita, e é sobre essa tessitura que se concentra a produção, ao tentar investigar através de imagens, sons e explosões a calmaria antes de tão ruidosa tempestade – e a tempestade em si. É como se, enfim, Ramsay tivesse se conectado a um estado emocional inoperante, de pessoas automatizadas pela sociedade, mas que veem nesse ato de desprendimento dos valores tradicionais cinematográficos, uma tentativa de pedir coletivamente pelo que não há diálogo, dentro e fora da narrativa. 

Assim como Lars Von Trier realizou nos grandes momentos e filmes onde falou sobre o feminino, Ramsay está disposta a radicalizar a mensagem para capturar mais do que uma cena ou uma leitura, mas uma sensação física, uma catarse quase epiléptica. Vide Anticristo, onde Charlotte Gainsbourg se via em meio à maior das dores, para ressignificar sua feminilidade e organizar de volta para uma conexão quase espiritual com sua essência. Em Morra, Amor, Grace só vê espaço para a exasperação após dar à luz, e sentir que o universo desconfigurou-se por completo. As discussões que a narrativa propõe são modernas, como a chamada maternidade compulsória, uma resposta ao que se definiria como modelo social aceitável. E mesmo ao casamento tradicional, com alguma elaboração moldada ao que se espera seguindo algo como as normas padronizadas. 

Morra, Amor olha esses conceitos pré-estabelecidos também ao dirigir-se para o passado representado pelo casamento dos pais do personagem do marido, vividos com brilhantismo por Sissy Spacek (Oscar por O Destino Mudou sua Vida) e Nick Nolte (indicado por O Príncipe das Marés). Através desses personagens, o filme modula as intrínsecas certezas de Grace, que não quer para si, inconscientemente, o resultado daqueles anos de uma conexão que não é necessariamente desejada. Ou seja, estamos falando de um projeto cuja liberdade é ansiada, observada, até mesmo sonhada, mas cujo alcance não chega a sair do campo da suposição, pois mais uma vez não é esse o lugar que a sociedade lega à mulher; Grace então a toma, fazendo de si mesma um instrumento. 

Aqui e ali, Ramsay ainda escorrega em exageros desnecessários e absolutamente incondizentes com o trabalho tão bem modulado do resto, por exemplo quando não deixa de insistir na “transformação” de Grace em um animal, cuja conotação é tão repetida que perde a ambiguidade. Apesar disso, o filme contém a melhor atuação de Jennifer Lawrence desde mãe!, um papel tão subestimado quanto aqui. Como Hollywood a tratou de maneira precoce, agora aos 35 anos seu espaço parece ter diminuído dentro da porção do prestígio industrial, mas o que ela entrega aqui é infinitamente superior às suas performances premiadas. Com ecos da já citada Gainsbourg mas também da Gena Rowlands de Uma Mulher sob Influência, a atriz agora sim amadurece frente ao espectador, que acompanha um mergulho que amedronta diante das possibilidades reais de gerar camadas de reflexão na relação das mulheres com seus lugares sociais, com sua formação profissional, com o que é imposto para ela. 

A já premiada fotografia de Seamus McGarvey nos carrega para a dualidade entre sonho e pesadelo que está impressa no plano, e que sua diretora conduz com insuspeita tranquilidade. Diferente dos seus últimos trabalhos, Ramsay controla as ações de Morra, Amor com a eficiência de quem conhece tais situações, como se estivesse faltando a ela somente comunicar-se com os temas aqui presentes. Quando o filme (e sua protagonista) finalmente abraça o caos e as zonas proibidas que só a libertação pode causar, o que engole as imagens é, mais uma vez, a voz do fomenino em sua colocação mais primordial, aquela que não persegue os papéis previamente estabelecidos a ela, mas sua pulsão de vida individual. O fogo e a natureza constantemente duelando, a fúria e a sua constituição primeira, que até o fim irão duelar para mostrar a verdadeira face da mulher. Morra, Amor não carrega entretenimento vazio, estamos falando de cinema para gente grande. 

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