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Valor Sentimental: Joachim Trier e o olho do furacão emocional das famílias disfuncionais

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Joachim Trier é hoje o maior nome do cinema norueguês, e provavelmente depois do próximo março, essa alcunha torne-se incontornável. Com a estreia de Valor Sentimental, ele solidifica sua assinatura, após assombrar o mundo com seu longa anterior, A Pior Pessoa do Mundo. O escopo dessa vez, no entanto, é ainda maior: Trier não se interessa apenas mais por um recorte pessoal acerca de um estudo de personagem contemporâneo, conectado ao que de mais atual existe em matéria de dissociação emocional e trato das próprias inquietações.

Valor Sentimental é seu filme mais amplo no ponto de vista do social, das interconexões macro, e de como a absorção dos percalços familiares podem soar, de indivíduo para indivíduo. O apanhado espaço-emocional acaba por ocupar uma ambição ainda não vista em sua filmografia, em um título onde os acertos extrapolam um jogo de investigação parecida que ele teria proposto no passado, em Mais Forte que Bombas. Se seu filme anterior encantou o mundo com uma visão absolutamente moderna acerca das relações humanas e da maneira como lidamos com nossa autoestima, Valor Sentimental é uma jornada pelo interior de instituições ancestrais, como nossa relação com o lugar de onde viemos e os conceitos tradicionais de família.

Esse lugar propriamente dito não é apenas definido geograficamente, mas a maneira (in)segura com que nos aprofundamos nos traumas que os laços de sangue frequentemente nos legam. Assim que mergulhamos na miríade de sensações e eventos que o filme organiza, ao menos uma situação já está explícita: os Borg não são apenas vetores dos sentimentos que carregam, mas também reféns de um espaço físico. Aliás, a casa que abriga tal sobrenome há algumas gerações marca não apenas seus moradores, como impinge neles uma herança histórica acerca do abandono e da reconstrução afetiva, onde nenhum arranjo de responsabilidade emocional está em sua rota. 

A abertura de Valor Sentimental nos remete a um olhar testemunhal sobre esse personagem mudo – a casa. Nesse prólogo devassado pelo tempo, onde o fino trabalho de montagem de Olivier Bugge Couté resgata os antepassados da atual geração dos Borg, Trier encarrega o espectador de permanecer em escala dupla para a produção. A percepção não pode ser feita exclusivamente pelo que está sendo contado de maneira regular pelo roteiro, mas principalmente pelos rasgos narrativos que arremessam a produção anos antes, décadas antes. A partir do momento onde esse prólogo termina, somos apresentados a Nora em uma das passagens mais perturbadoras do ano, o artifício faz um pacto com o naturalismo, para seguirem no encalço dos Borg e das feridas que a família tende a esconder com algum talento. O resultado disso é a cena inicial de Nora, ou melhor, estamos diante de um caso raro de reação antes da ação. 

Apesar dos agregados, os Borgs são os protagonistas da produção, e também o foco do adoecimento que o filme investiga: Nora, sua irmã Agnes e seu pai, Gustav. A corda das relações aqui é esticada até o limite, em três estágios distintos do trauma: o causador, seu foco de questão e a abnegação do mesmo. Gustav é um diretor de cinema consagrado, prestigiado e homenageado, que retorna à casa da família quando sua ex-mulher morre, e isso também significa retornar ao convívio das filhas. Nora é uma grande atriz que não encontra estabilidade na carreira ou na vida pessoal; Agnes já foi uma atriz, e hoje é realizada longe dos holofotes para a qual foi cooptada ainda criança. Valor Sentimental investiga as ranhuras de um núcleo familiar arruinado pelo abandono emocional, de uma forma tão intrincada em suas sensações, sem abrir mão da comunicação direta. 

Desde a primeira sequência, Trier demonstra que suas capacidades enquanto autor não podem ser encerradas no roteiro e na direção de atores. Ainda que sejam duas implicações óbvias para ele, cada vez mais essa é uma carreira mais complexa do que costuma atrair. Com Valor Sentimental, o diretor escancara suas habilidades ao desenhar uma escalada de transformação emocional (tanto em seus exemplos bem sucedidos, quanto no horror do qual estamos submetidos) que está na composição da utilização das palavras e do material humano. Isso está no ritmo da narrativa, e está na maneira com que cada personagem é filmado, com fúria (Nora), com uma espécie de maravilhamento da melancolia (Gustav), e com uma descoberta rara da capacidade de ser indivíduo, e não apêndice (Agnes). 

O resultado alcançado pelo coletivo de atores beira um sublime que é conseguido através de uma dedicação profunda de submergir no naturalismo. Renate Reinsve, Inga Ibsdotter Lilleas e Stellan Skarsgard (o último em estado de graça) embebem dessa mola propulsora de vivências e ressentimentos, que estão na superfície ou arraigados na vida ordinária, com uma força que é descomunal justamente por ser tão carregada de coloquialismo. Quem irrompe desse quadro para encontrar uma nova forma de experimentação, é a estrela hollywoodiana vivida por Elle Fanning.

De algumas muitas maneiras, Fanning é o espectador também em Valor Sentimental, que aproxima-se de maneira muito perigosa daquele grupo de pessoas, a ponto de ver a si mesmo. A partir daí, ter a auto preservação de fugir diante do poder destrutivo de uma força da natureza chamada ressentimentos familiares. Ao espectador, não cabe a fuga, e sim ser tragado para esse olho do furacão emocional, e sair definitivamente mudado de dentro dele. 

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