- Publicidade -

Passagens é um retrato acerca de seres humanos adoecidos

Publicado em:

Passagens abre com uma sequência emblemática – que, certamente, também sé uma das mais bonitas e paradoxais cenas do ano, é algo com o qual o diretor Ira Sachs é consciente de ter concebido. No longa, Tomas é um diretor e está no último dia de filmagens de seu novo filme, o set não é tenso, aparentemente estamos acompanhando uma sequência simples, de ‘passagem’. Aos poucos, o que era absolutamente prosaico ganha arranhões cada vez mais quentes, e o responsável pela produção enfim desanda, mostrando seu temperamento, mas é absolutamente compreensível o que aconteceu ali; fora dali, ao longo da hora e meia com que o acompanhamos, definitivamente não é. E é por isso que tal cena é tão cheia de uma carga que acompanharemos a seguir, corresponde muito sobre o que o filme está debruçado, graves e agudos, e a explosão de som e fúria que nasce das artimanhas do cotidiano.

PassagensSachs e seu escudeiro de roteiro, o brasileiro Maurício Zacharias, há alguns anos investigam curvas da sociedade LGBTQIAPN+ sem repetir o viés, ou mesmo o tom. Sua parcerias Deixe a Luz Acesa e O Amor é Estranho dissecam lados diversificados de uma cena que precisa ser olhada com menos edulcoração, ou detrimento. Se no primeiro uma relação toxicamente melancólica era arrastada pela tristeza, o segundo é quase uma denúncia cheia de afeto sobre o abandono de pessoas ‘queer’ na entrada da terceira idade. Agora, Passagens parte do que indica ser um estudo de personagem, mas que se desdobra de maneira bem mais radical que isso, onde os detalhes estão nas entrelinhas.

Não que Passagens se desdobre de maneira lacunar contínua. O que vemos são flashes de uma trajetória emocional errática, sem qualquer senso empático, que não intervém ao veneno que distribui a quem o segue. Tomas é casado com Martin, mas não se furta de ter uma noite sexual com Agathe… e ao chegar em casa, relatar isso ao marido. As fissuras que vão se revelando nas relações entre esses três personagens (e que também acabam por tragar o escritor Ahmad para o mesmo turbilhão) são de uma maturidade espantosa, raramente um filme foi tão adulto recentemente, e expôs de maneira tão desconcertante a maneira tóxica com que estamos acostumados a criar relações, e não interrompê-las por mais agressivas e doentias que elas se tornem.

Essa veracidade tão crua está nas marcações de Sachs para cada cena, está no despudor do seu texto e de Zacharias para colocar-se dessa maneira tão insidiosa, mas também está no desenho que os atores fazem daqueles momentos. Isso é habitual na carreira do cineasta, que lida com a coloquialidade das relações que pinta de maneira tão íntegra quanto palpável, criando entre o espectador uma sensação documental breve. Ainda assim, o olhar não estava preparado para o que é mostrado em Passagens, que rascunha a liquidez das pessoas e de suas propostas de uma forma muito violenta, que induz a nos proteger contra o que é arremessado na nossa direção, sempre impactante em gestos e corpos e olhos.

Não estamos diante do que, em teoria, poderia ser entendido como uma postura teatral de cinema, tendo em vista a quantidade reduzida de personagens e da profundidade humana que está sendo contada. Ao invés disso, Sachs quer exatamente transformar em plano tudo que está no centro da narrativa. Passagens não somente é de uma profusão inebriante de cores e luzes, como o diretor se movimenta em cena de maneira muito ágil, quase um animal feroz avançando em cada imagem. Para acompanhar os rompantes de Tomas, o filme não podia ser mesmo um campo suave de sensações; o filme pulsa na vibração do que está sendo contado, às vezes mais expansivo, e em outras menos sanguíneo, traduzindo cada movimento desse cara.

É, com um microscópio em cima de cada um, um retrato acerca de seres humanos adoecidos, constantemente machucando e sendo machucados. Isso não é proveniente das traições de muitas ordens cometidas em cena, mas do que é constante em cena, que é o erro que não cansa de ser cometido, e de ser consertado com outro. Passagens é um título muito perigoso, e não apenas por vermos constantemente o vermelho rasgar a tela (inclusive na irônica cena final, que vende liberdade quando na verdade não deixou ninguém liberto), mas porque o reconhecimento do que se vê ser tão reconhecível, assim como cada gesto, cada sexo, cada encontro, e cada separação. As muitas, e os muitos retornos também.

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -