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“Gente de Bem”, a ‘Comédia Humana’, de João Ximenes Braga bate, arde e fica

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Moisés Alves, poeta que elege Maria Callas e Estamira para suas epígrafes, incluiu nas páginas de seu livro “Mangue” umas palavras que podem ser valiosas quando se adentra na essência de “Gente de Bem”. Diz ele: “O futuro nunca chega/ de forma esperada/ e em geral não estamos/ poeticamente disponíveis./ Batemos a porta no susto”. Mais adiante, crava: “Folhas não morrem de gripe/ um olho de tandera/ sobre o musgo das coisas (…)/ abri o livro inesgotável do esquecimento/ o livro ainda quente/ encontrei você”.

Na peça, o que a gente vê nas seis histórias encenadas pela Cia. Comparsaria Teatral, é uma mistura desses dois hemisférios: o da perplexidade e o da melancolia.

"Gente de Bem"Na base da uma investigação espacial, amparada pela luz dionisíaca de Anderson Ratto, o texto que serve de motor de arranque à peça não é um poema, embora carregue uma centelha de lirismo (até no azedume): é o livro “Necrochorume e Outros Contos”, do carioca João Ximenes Braga. Fala-se muito do autor pelo troféu Emmy que ele recebeu, em 2013, pela novela (escrita com Cláudia Laje) “Lado a Lado”. Nela, já se descortinavam as inquietações decoloniais que podem ser encontradas em “Gente de Bem”. Fora da TV, onde roteirizou “Paraíso Tropical” e “Insensato coração”, com Gilberto Braga e Ricardo Linhares, Ximenes tem lugar cativo como um dos textos mais influentes da geração de repórteres e colunistas da qual faz parte.

Coquetéis de bom humor, acidez e descaso com os tabus da sociedade brasileira – assim eram suas participações em O Globo. Há 20 anos, ele fez um rasante pela literatura com “Porra” (Ed. Objetiva), no qual a violência de um pitboy e artimanhas de tipos característicos de um Rio de Janeiro de bas-fond formavam um painel das falências morais de nossa cidade. O que se vê em “Gente de Bem” segue essa linha. Uma vez mais, a poesia de Moisés Alves define bem a coisa toda: “antes de tudo/ havia um começo/ onde coisas já eram sobras/ de coisas e atravessavam /umas às outras”. Pois bem… o que se vê  é um inventário de sobras. O que sobrou de um Rio suspostamente inclusivo, o que ficou do saldo da intolerância.

O mérito primeiro (e maior) desse espetáculo é jogar os holofotes das artes cênicas sobre a riqueza literária da prosa de Ximenes, bem calçada por “Juízo” (Ed. 7 Letras) e “A Mulher Que Transou Com o Cavalo e Outras Histórias” (Ed. Língua Geral). Seu “Necrochorume” é um “Short Cuts”, como o filme de Robert Altman, no qual situações do todo dia (algumas retratadas sem a preocupação de um desfecho, de um The End, de Happy End) escancaram as colisões de corpos e almas numa metrópole chegada a invisibilizar quem não interessa à sua intelligentsia. Aliás, a cada livro novo, Ximenes foi, certamente, moldando sua Comédia Humana, brincando de Balzac (a sério).

Ilusões perdidas inundam a montagem de “Gente Bem”, encaixando seu elenco (Adriana Maia, Alexandre Damascena, Ana Achcar, Anna Wiltgen, Camí Boer, Dadá Maia, Gilberto Goés, José Ângelo Bessa, Mariana Consoli, Miguel Ferrari, Pamela Alves, Stefania Corteletti e um luminoso Xando Graça) em episódios sobre racismo, homofobia, conservadorismo. A situação inicial fala dos conflitos em um condomínio com a chegada de um novo morador, um chef renomado (José Ângelo Bessa), que traz consigo seu namorado. A plenitude do casal irrita a vizinhança.

Mais adiante, a presença de uma antropóloga indigenista no perímetro visual de uma vizinha afeita ao trinômio “Deus, Pátria e Família” gera situações constrangedoras acerca da convivência entre polos afetivos opostos – e faz a plateia rir, de nervoso. Dadá Maia e Ana Achcar assumem esses papéis em estado de graça, e brilham do começo ao fim dessa trama. Há outras. Numa das melhores, um pai de família (Xando, colossal em cena) cioso da “pureza” das raízes lusitanas de seu clã afoga em uísque seu desdém pela ideia de ancestralidade.

Um tomo dedicado a xexelentas picuinhas numa redação de jornal arranca do ator (e doutor na Letras da UFRJ, especialista em Machado de Assis) Alexandre Damascena uma interpretação fina, de modo a flagrar como o Quarto Poder muitas vezes reduz a igualdade a um calhau. Há ainda um debate quase jogralesco sobre escravizados de hoje, numa denúncia do abuso do trabalho. Adriana apara cada vértice desse seu hexaedro afiando uns mais, outros menos. Mas o conjunto dessa sua geometria bate. Arde.

Há casos desses que nos arrancas risadas, outros geram engulhos, mais ou menos como o Brasil faz com a gente. Desopila-se o saber gerado pela peça mergulhando-se (de novo) no “Mangue” de Moisés: “as alegrias estão por aí/ na mesma proporção/ que as fúrias/ é por revolta que faço/ da alegria/ arma pesadíssima/ nunca fui a favor de morrer com vida”.

Confira o serviço da peça!

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