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A Paixão Segundo GH: Luiz Fernando Carvalho lança olhar sobre Clarice Lispector

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Publicado em 1964, o leitor de Clarice Lispector lida com “A Paixão Segundo GH” há 60 anos exatos. Esse é o tempo em que seus códigos tentam ser decodificados, que sua narrativa tenta criar um laço viável com quem se aventura por ele. Luiz Fernando Carvalho já tinha provado suas toneladas de coragem ao assumir a adaptação de um Raduan Nassar muito árido, Lavoura Arcaica, e sair da experiência com um clássico. Sua versão para A Paixão Segundo GH está dentro do que sua carreira promoveu, uma sucessão de desafios ininterruptos, tanto no seu único longa até então, quanto na luxuosa obra televisiva que compôs, da obra de Eça de Queiroz para “Os Maias”, em outro tempo que não o nosso veloz, e nos deslumbrado.

A Paixão Segundo GH

Quem conhece a obra de Lispector (e que não seja através de memes da internet), tem consciência de que qualquer adaptação sua é um portento que não se aplicaria a diretores que não tivessem muita gana. Ainda que o indicado para A Paixão Segundo GH fosse uma diretora no comando de uma obra cujo feminino é o cerne, tenho para mim que Carvalho é um profissional apto para o mergulho intenso. Ainda assim, foram quase 15 anos entre a decisão para a adaptação e o lançamento do filme. O resultado chega aos cinemas essa semana sem fazer concessões, como cabe à autora e seu diretor. O leitor desavisado não precisa obrigatoriamente ter lido Lispector, mas tal encontro era necessário para não questionar a exigência do que irá assistir.

Como no livro, A Paixão Segundo GH é um rebuscado processo de reflexão e auto análise que resulta em um monólogo. Essa protagonista está em cena sozinha, após a partida de sua ajudante, e encontra durante uma limpeza, uma barata. Esse é o ponto de partida que movem livro e filme, mas aqui a experiẽncia de imersão já tinha se estabelecido desde a abertura. E, apesar do conhecido rigor de Carvalho na composição do que é visto, Lispector especialmente é uma escritora com muito desvelo à palavra falada, e aqui especialmente isso se mostra preponderante. Por duas horas, o desafio é um só: nos identificarmos com essa mulher, ou ao menos sermos empáticos a ela, e se deixar levar pelo que está em processo dinâmico.

Para fazer esse caminho entre a prosa literária e um universo que precisa ser cinematográfico, Carvalho contou com duas colaboradoras essenciais. No roteiro, ele tem Melina Dalboni ao seu lado para acessar tudo que é do feminino com lucidez e verdade. Aliás, nenhum esforço de colocar A Paixão Segundo GH em versão audiovisual seria recompensado sem o encontro com a atriz ideal, e essa pessoa o diretor já conhecia há mais de 20 anos. Provavelmente teríamos grandes atrizes capazes de acessar o âmago de Lispector, mas é impossível hoje pensarmos em GH sem pensar em Maria Fernanda Cândido. A atriz explodiu em sua estreia em novelas, ganhou um prêmio de melhor atriz em Gramado apenas três anos depois (por Dom) e aqui deve ter o melhor momento de sua carreira, com a intensidade, a entrega, a disponibilidade, a beleza que se espera desse salto sem paraquedas que é encarar esse rochedo.

Não é algo fácil, provavelmente o grau de sofisticação e desafio aqui esteja na casa do impossível de mensurar, mas existe uma espécie de domínio de Cândido por aquilo que está sendo feito. Apesar do que, por exemplo, a fotografia de Paulo Mancini e Miquéias Lino realizam, retirando o foco quando necessário, com uma luz ora fosca e ora inebriante com o fervor que exerce nas cenas, A Paixão Segundo GH tem um elemento de sustentação, e ele está nas costas da atriz. Ainda mais desafiador que um monólogo teatral, Carvalho e Cândido desafiam o espectador a afastar o olhar da palavra, se desvencilhar do verbo e encontrar consenso em uma produção exigente e árida.

Definitivamente não é um projeto para quem está passeando por um shopping e resolve entrar no cinema para conferir um ‘cineminha frugal’, mas esse é o cerne da construção de Clarice, que Carvalho tenta aproximar-se, e extrair novas costuras. Como dar voz, traços e, de alguma maneira, voz a personagem que sairá de cena, ou de nos surpreender ao promover o reconhecimento entre uma mulher e o que ela repugna – até deixar de fazê-lo, e questionar-se: por quê? Ainda que nos exija e cobre um preço por tal, A Paixão Segundo GH não deve gerar medo. O cineasta que conhecemos nunca teve a intencionalidade, em nenhuma obra sua, de parecer reproduzir o real; ele deseja o sonho, o artifício, a elucubração.

Com essa colocação, o diretor tenta desmistificar, apesar disso, quem tenta taxá-lo como hermético. Porque estamos diante de uma obra que, ao recusar-se tratar do naturalismo tão vital ao cinema brasileiro moderno, não está rechaçando-o, e sim valorizando a magia. E ao procurar distanciar sua visão do que é feito hoje, com uma obra moderna como a de Clarice Lispector, Carvalho aposta na comunicação direta e na indireta, quando politiza os atos de cena, além de seus discursos. Independente da roupagem, a voz da mulher está sendo potencializada para uma conversa contemporânea, sobre desejos, impulsos e perdas, e tantas outras sinuosidades que somente esse encontro poderia causar.

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