Rapto leva o espectador até lugares traiçoeiros, do ponto de vista psicológico

De vez em quando aparecem na nossa frente uma daquelas produções pequeninas mas que conseguem efetivar cada intenção pretendida, saindo do lugar onde almejava estar para algo bem maior. Essa semana estreia nos cinemas, Rapto, estreia na direção de Iris Kaltenbäck, aliás, o filme que saiu premiado da Semana da Crítica no Festival de Cannes e promete levar o espectador até lugares muito traiçoeiros.

Graças ao rigor com a qual sua diretora move as peças de seu jogo de xadrez particular, o espectador segue junto a ela interessado nos próximos passos de uma protagonista que faz tudo errado, mas que acaba por se defender na base da empatia que o filme veste nela.

Aos 35 anos, Kaltenbäck entrega a Hafsia Herzi um daqueles ‘papel da carreira’, mas isso não é fruto de um reconhecimento específico a uma atriz surpreendente, mas uma ampla visão sobre estudo de personagem e acerto estético, que envolve Lydia em um espaço impensável. Não há como fugir de algo cujo spoiler é garantido pelo título, mas ao se livrar do peso de conhecer previamente o elemento principal da obra, acabamos por nos abrir a certificar a amplitude de tais atos, e de como estamos diante de uma bola de neve que não para de rolar. Não há como defender as ações de sua protagonista, mas não há o desejo de fazê-lo, o intuito aqui é humanizar tais erros.

E isso só é possível porque a autora constrói com exatidão o desenho de uma das protagonistas mais infelizes do cinema recente. Tudo é credibilizado em cena pela quantidade de eventos e reações em cadeia pelo qual Lydia é surpreendida. Ela parte de uma reação natural dentro de um contexto de nova paixão (a vontade de parecer alguém mais adequado ao seu amor) para atingir lugares excepcionais em seus erros. Que suas atitudes são indefensáveis, Rapto sabe disso, mas o que instiga em cena é a consciência de Kaltenbäck em mostrar toda a fragilidade de sua protagonista, sem julgá-la porém colocando suas decisões em modo de equilíbrio, para que o espectador tire suas próprias conclusões.

Partindo de um drama muito pesado até chegar em um suspense que, mesmo que sem os elementos surpresa que possam qualificar o gênero, ainda assim carrega uma tensão inerente justamente a sua classificação, Rapto é um filme que se assiste com muito entusiasmo. Porque, acima de tudo, verdadeiramente é um título cheio de frescor no que está contando, da forma atraente com que os elementos se apresentam. É uma experiência com estilo de sobra que se comunica com o cinema mais direto no que apresenta em sua frontalidade, mas que garante um diferencial não por seu falado em francês, mas porque o filme investe em um polo de análise comportamental.

É muito mais do que o cinema tradicional estadunidense faz, e isso porque são colocados elementos o suficiente para complexificar sua personagem central. Rapto é, certamente, um retrato bem interessante do desvio psicológico e de situações dramáticas que podem acontecer em qualquer grande cidade do mundo hoje. Sua colocação contemporânea tira as impossibilidades da frente e apresenta um quadro muito crível de desequilíbrio provocado por uma combinação perigosa de distúrbios psicológicos de hoje. Lydia é uma bomba de abandono e carência prestes a explodir.

Todo esse olhar é realçado pela interpretação minuciosa de Herzi, uma grande atriz que encontra aqui um palco raro. Estrela de produções premiadas como A Fonte das Mulheres e O Segredo do Grão, Herzi tem aqui um daqueles momentos que construiu a trajetória de estrelas como Glenn Close e Kathy Bates. Ao alcançar reconhecimento merecido com uma sociopata movida por uma paixão fantasiada, ela não nos deixa nunca de acreditar em sua razão. Sua entrega é o fio condutor de Rapto, e nosso envolvimento só se dá pela forma compromissada que a atriz emprega em cada nova camada de seu desajuste emocional. Um momento lindo de uma atriz, em uma personagem tortuosa e infeliz.