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Entrevista com o Demônio é um terror envolvente com charme ininterrupto

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É muito salutar que os dois melhores representantes de gênero de 2024 até agora estejam batendo na porta dos nossos cinemas em semanas consecutivas. Ambos também estão interessados em referendar o audiovisual de 40 e 50 anos atrás, e não se tornar refém deles, mas em tomar para si as narrativas que pretendem desenvolver a fim de montar um mosaico amplo sobre o tempo do cinema e da TV, e de todos os tempos. Enquanto MaXXXine extrapola o cinema dos anos 80 com uma saturação ímpar, Entrevista com o Demônio pega o que seria o primeiro tomo de programas de entrevistas televisivos para refrescar uma tipificação do cinema que contempla tantos fãs quanto tem de material desgastado.

Os irmãos Cameron e Colin Cairnes estão em seu terceiro longa-metragem, mas estavam afastados do cinema há oito anos. Se suas obras anteriores não chegaram até aqui, a partir de Entrevista com o Demônio se faz obrigatório acompanhar seus próximos passos. Não podemos atacar o terror (ou o cinema fantástico, por assim dizer) com as mesmas acusações de sempre, de falta de imaginação ou repetição de fórmulas consagradas. Isso existe, evidentemente, mas quando algo como o que é oferecido aqui aparece, é necessário mesmo zerar as discussões para que tenhamos uma nova observação a respeito do formato. Sem ligar para o que vinha sendo feito até então, o filme arrisca sua própria degustação em apenas noventa minutos, em um talk-show decadente de 1977 – e só mostrar isso.

Brincando com o esquema hoje saturado das ‘found footages’ (aquele estilo de filme que A Bruxa de Blair lançou, onde assistimos ao que foi achado dos eventos apresentados), Entrevista com o Demônio ainda comete o delicioso desvario de manter o espectador assistindo basicamente a um programa de TV. Além de surtar com o formato, os irmãos Cairnes, por lançarem uma produção absolutamente independente dos meios tradicionais, puderam arriscar nesses elementos. O que vemos é uma produção sem um traço sequer de medo, que enfrenta as possibilidades que apresenta de peito aberto e um coração pulsante o tempo inteiro.

Com um visual fascinante deslocado no tempo para quase cinquenta anos atrás, Entrevista com o Demônio é acima de tudo um filme que não abre mão de um charme ininterrupto. É muito envolvente praticamente tudo que está em cena, das chamadas de reclame do ‘Night Owls’ até o olhar absolutamente comprometido de Rhys Auteri, um desses coadjuvantes que deveriam ter um filme próprio, e que conversa demais com a unicidade das coisas. Não se trata, no entanto, exclusivamente de algo sedutor que salta aos olhos, mas da construção de um grupo nada reduzido de personagens, para o escopo tão reduzido do projeto. Temos pelo menos seis tipos dotados de personalidade e dimensão complexa, que se mostram dentro de um espaço que respeita suas integridades individuais.

Paira acima de todas as coisas apresentadas com maestria por essa combinação única que os irmãos Cairnes apresentaram em direção e roteiro, uma consciência de falar para além de 1977. Chegamos em 2024 no assombro das tentativas de galgar os caminhos para encontrar um status que seja perene e não descartável. Entrevista com o Demônio (e igualmente MaXXXine) é, surpreendentemente, uma obra a respeito de um posto intangível que hoje pode ser ocupado por qualquer um, a qualquer momento. Seja a fama, e suas consequências, e o quanto você estaria disposto a tê-la, e mantê-la. Do que ouvimos falar a respeito de nosso protagonista, ao observar seu derradeiro abraço a tudo que pode representar o futuro, existe muito carinho por ele e muita segurança no desenvolvimento de seu arco.

Não é comum o que vemos ser apresentado, e com tamanha solidez, aqui em Entrevista com o Demônio, porque os riscos apresentados eram absolutos. É uma ideia que ultrapassa as barreiras do cinema, para encampar uma área que volta hoje a ser considerada concorrência direta – a força do hábito construído dentro de casa. A estética que encerra 90% das imagens em reproduções de um programa de TV antigo poderia afastar o espectador, mas, pelo contrario, é o que cria uma válvula fascinante entre os acontecimentos. Não há a perda dessa chave de feitura em nenhum momento, e a radicalidade com que isso é encenado, incluindo a apoteose do arco de desfecho, garantem um caráter de experimentação a um projeto muito especial.

Tudo estaria perdido se não estivesse em cena alguém menos enigmático que David Dastmalchian. Ele esteve presente tanto em Oppenheimer quanto em Duna e perambulou por muitos filmes de gênero nos últimos anos. Seu talento não era desconhecido, mas tudo parece ter sido moldado para o que ele apresenta aqui. Um desses momentos únicos em uma filmografia, onde vemos o profundo talento em consonância com o veículo que está ocupando, com a leitura mais acertada possível do homem que vive. Jack Delroy vive intensamente porque Dastmalchian é uma figura uniformemente atenta a todos os elementos que o filme apresenta, como o apresentador que ele de fato incorpora aqui. Se saímos tão condoídos de uma experiência visceral quanto a apresentada em Entrevista com o Demônio, a alma, a inquietação e o poder hipnótico do todo vem do impressionante trabalho desse ator em domínio de sua arte.

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