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Motel Destino: Karim Aïnouz filma a efervescência de cada movimento de seus personagens

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Em uma discussão após a sessão de Motel Destino, ouvi alguém julgar as capacidades inflamáveis do cinema de Karim Aïnouz – sua produtora, não por acaso, chama-se Cinema Inflamável. Não tive como sequer começar a argumentar a respeito, porque nem se configura como subjetivo tal questão: poucos dentro do cinema brasileiro hoje, podem ser considerados mais à flor da pele que o cineasta cearense. E seu novo filme, vindo de uma trajetória desconcertante no Festival de Cannes desse ano, é uma dessas provas definitivas de que isso não deveria ser sequer discutido, a essa altura. Mas efetivamente desde Madame Satã o cinema não precisa procurar um novo piromaníaco pra chamar de seu, e desde então as imagens que produz ocupam temperaturas cada vez mais altas dentro e fora da sala escura. 

Desde Hitchcock que o cinema vê o estabelecimento de beira de estrada como palco para um esconderijo de práticas ilícitas no mundo exterior, onde ali naquele universo particular novas diretrizes precisam ser descobertas. Na teoria, Aïnouz está olhando para a fratura que o cinema de gênero provocou à estrutura clássica, com a influência que o ‘filme noir’ também acrescentou à mistura estadunidense. Na prática, o cineasta de O Céu de Suely procura na nossa própria cinematografia os elementos necessários para resgatar uma ranhura emocional tão cara às suas obras. É nos confins da boca do lixo que o cinema brasileiro formatou com todo o peso durante a década de 70 (mas que borra também os anos 60 e 80) que o diretor telegrafa uma mensagem para vinte anos atrás e resgata o tanto de calor que brotou de suas duas primeiras obras, justamente as citadas até agora. 

Não que tenha sido desprovido de altas temperaturas no corpo de sua filmografia, e que quando ela faltou em Praia do Futuro a intenção não fosse justamente demarcar esse ponto, mas Motel Destino é um dínamo de sugestão de labaredas, e isso não é uma provocação que se situa no valor de erotismo do filme. Nenhum fogo é brando aqui, entre as relações humanas, às de trabalho, às questões de poder, ou mesmo a evidente carga de animalidade que salta da tela. A tensão não é apenas de ordem erótica que está na tela, mas diante de todos as coisas o diretor filma a efervescência, seja no calor da pele ou na ebulição de cada movimento de seus personagens. São dinâmicas carregadas de urgência, e que resvala no que está sendo dito e vivido, mas igualmente na simbiose de cada evento ali com o passado que não vemos. 

Também esse é um lugar que nos transporta diretamente a um recorte de cinema que o Brasil ofertava há cinquenta anos atrás. Carlos Reichenbach, Jean Garrett, Walter Hugo Khouri, Cláudio Cunha e tantos outros colocaram na rua um cinema que está na cadência da respiração que Aïnouz reproduz aqui, mas não é como se o diretor optasse por abandonar seu relevo. Porque ele já reverberava essa inquietação do início de sua filmografia, e o que vemos em Motel Destino, desse jeito, soa como natural e integrado a um grupo de filmes que já se comunicava com esse cinema menos cartesiano. Se aqui e ali o filme parece um orgulhoso filhote de algo do período, Aïnouz não tenta nada que já não fosse de seu DNA, por isso a questão de que seu cinema já era perpassado por essa dinâmica desde sempre. 

Através de uma história de matriz simples (sem ser simplória), o que assistimos é uma azeitada rememoração do tempo onde o desejo era o preponderante das relações, e não precisava de uma nomenclatura mais clara do que a retina pode gravar. Toda essa pompa pra dizer que nada está claro em matéria de sexualidade e não apenas entre os protagonistas; pra onde olhamos, é passível de encontrar diversidade, da mais sutil até a mais explícita. O que está em lugar mais evidente aqui é essa moldura clássica do ‘noir’ já citado, mas traduzido de uma maneira onde o corpo de sua filmografia esteja em cena na superfície. Temos o casal de amantes e o marido traído, mas nenhum dos três está no campo clássico de representação; por isso, Motel Destino não pode ser batizado de acordo com o cânone. A ideia então é acompanhar o que achamos, enquanto espectadores treinados, a acreditar de direcionamento, e perceber que a ocupação desse cinema é apropriar-se de cada personagem para dissecá-los, sem esgotá-los. O resultado é essa imprevisibilidade traduzida de maneira exemplar no encontro entre Elias e Heraldo na praia, na reta final; todo o filme está ali, e ao mesmo tempo um novo filme nasce a partir dali. 

Nesse elenco acima da média, o trio principal atinge um nível que o cinema brasileiro ainda não tinha apresentado em conjunto. É fascinante acompanhar desde a desconstrução de Fábio Assunção, até que já foi sinônimo de galã global, e aqui arremata a reviravolta que ele vem promovendo na carreira já há algum tempo. Nataly Rocha já tinha aparecido em inúmeros filmes, mas aqui finalmente encontra um veículo que centraliza seu trabalho, e lhe empresta uma voz que não aparenta, a princípio, mas que consegue monitorar o próprio empoderamento. No meio deles, surge a revelação Iago Xavier, um dínamo em cena; como acreditar que essa pessoa não tinha experiência prévia em cinema, se tem o exato controle sobre a própria arte? 

E no meio de saídas bem pouco esperadas para uma situação tão confortável, Motel Destino nos surpreende pela última vez ao propor o apaziguamento do fogo. Assim como no já citado Praia do Futuro, Aïnouz nos apregoa que a resposta à avalanche de desejo é a memória, reconfigurada em algum lugar do passado. É quando nos despedimos de tais personagens sem qualquer agrupamento lógico, e evidentemente isso nem precisa ocorrer. Ao ler o texto de um conhecido hoje que demoniza acertadamente a ânsia por respostas concretas, me vem mais uma vez a certeza de que a carreira de Aïnouz não é uma ciência exata, e assim também o são o resultado de suas narrativas. Enquanto houver um punhado de sentimentos e de pessoas dispostas a vivê-los, com toda certeza a concretude é dispensável; que sobrevivam apenas o instinto e o tesão. 

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