- Publicidade -

Corisco & Dadá: Cariry discute o olhar dominante masculino ao começo de um processo revolucionário feminino

Publicado em:

Após a destruição que o governo Collor promoveu na nossa indústria cinematográfica, a chamada Retomada produziu um número acima da média de títulos que hoje podem ser considerados clássicos. Alguns são lembrados de maneira óbvia, como Carlota Joaquina; outros, chamaram atenção em seu lançamento, e agora podem ser enfim  introduzidos ao cânone de maneira justa. Corisco & Dadá acaba de retornar aos cinemas em uma cópia restaurada que é um dos feitos mais impressionantes da área. Simplesmente não há como ficar indiferente às imagens que Rosemberg Cariry criou há quase 30 anos e que, graças à recuperação, hoje parecem intactas e talvez até superiores que em sua estreia original, em 1996. 

Na ocasião das filmagens, Cariry estava com pouco mais de 40 anos e o filme foi apenas seu terceiro longa-metragem, e foi exatamente ele que deu projeção nacional (e internacional) ao cineasta. A quem não teve acesso ao autor, é ideal que se conheça seus primeiros passos a partir dessa saga histórica ao que seria nossa versão do western, o filme sobre o cangaço. Apresentando personagens históricos que eram um recorte importante do Nordeste brasileiro na primeira metade do século passado, o cineasta apresenta uma versão épica que tanto se apresenta agigantada quando precisa, como minimalista na construção do que somos apresentados, seus protagonistas e as maneiras de se relacionar escandalizantes, no hoje. 

É completamente diferente reencontrar Corisco & Dadá através dos matizes de 2024, com as discussões que temos hoje, onde logo na abertura um homem adulto sequestra uma adolescente para ser sua mulher, em troca de uma quitação de dívida moral. Não deveria ser necessário, mas o contexto do que está sendo mostrado se comunica com uma realidade de 100 anos atrás, onde tais cenas sim eram consideradas criminosas, mas que não podemos fingir da sua existência. Ao longo da produção, a sociedade altamente patriarcal (logo, machista) da época é mostrada sem pudores, mas colocando sua protagonista feminina – e as outras correlatas a ela – em posição de enfrentamento, ou liberdade. 

Através da construção dessas personalidades, em roteiro e mise-en-scène, Cariry discute de maneira muito febril essa observação social em contraste, do olhar dominante masculino ao começo de um processo revolucionário feminino. Não é de se estranhar que figuras de poder como as cangaceiras sejam figuras tão fortes dentro desse viés de mudança de paradigma, tomando não apenas as narrativas para si, mas fazendo isso tudo justamente pela imagem que essas mulheres reais desempenharam. Ainda que Dadá não tenha sido colocada em posição de comando como Maria Bonita é comumente retratada, Corisco & Dadá não a despe de uma imagem de poder, senhora de suas ações. 

Mas Cariry queria mesmo era falar sobre esses mitos através das imagens, e com isso transformar em um épico possível, com a escala possível, era a coisa mais acertada a fazer. Corisco & Dadá não é exatamente uma aventura escapista, mas usa de elementos de um cinema comercial para radiografar um tempo, seus habitantes e uma geografia muito específica. Com a perspicácia de quem tem como caro o assunto que está contando, o cineasta insere o próprio Cinema na construção do universo, como também faria mais profundamente seu contemporâneo, Baile Perfumado. Ainda assim, aqui também estamos metaforizando a respeito da manutenção de imagens para longe do estabelecido. 

O toque de Midas em Corisco & Dadá é a química entre Chico Diaz e Dira Paes, que constroem mais do que um casal, mas exatamente uma parceria dinâmica. Ambos estavam em uma zona de reconhecimento inicial de suas carreiras, e aqui ajudaram a construir a base da forma como os conhecemos hoje, segurando uma narrativa de força inegável em imagens que se tornariam inesquecíveis. Em certa passagem, quando uma tragédia torna a se abater sobre o casal, e Diaz declara um monólogo que o eleva, enquanto Paes é absorvida por tais palavras, temos acesso a um desses momentos de encontro entre esse casal e sua mitificação, que Cariry amplia até que suas trajetórias sejam complementares à das imagens, do espaço e da ação propriamente dita, que se encerra em uma sequência icônica, onde Corisco e Dadá praticamente se transformam em um só, para a posteridade. 

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -