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“A Cena (Não) Muda” canta os males do silenciamento

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Grávidas de perplexidade, as letras do musical “A Cena (Não) Muda” (auto-definido como “show teatral documental”) são um pleito de “Basta!” num paralelo histórico entre dois momentos da prática da inadimplência (e da intolerância) pelo Estado – aquele que usava farda verde oliva e aquele que veste o mug da PM. Não é necessário que se fale em Bertolt Brecht (1898-1956) na montagem em cartaz no Teatro Domingos Oliveira para que a dialética expositiva do poeta e dramaturgo alemão esteja lá, como aroma de pólvora, perfumando indignação. O pensamento brechtiano salta ao palco numa evocação (talvez não proposital, mas assim mesmo bem-vinda) a “Mãe Coragem” (1941), cujas rubricas nos alarmam acerca de uma das mais perigosas sequelas do processo dito civilizatório: a normatização das barbáries. Lá pelas tantas, Brecht escreve: “Estão dormindo os mortos. Que se aguente nos sapatos aquele que não está morto ainda!”. A retórica que normaliza o ódio é o objeto de estudo – e de repúdio – das canções entoadas por Analu Pimenta, Sirléa Aleixo e H I A N, num triângulo de alerta.

Dionisíaco em seu trânsito pelos rostos e pelos corpos dessas três atrizes, o design de luz proposto por Pedro Henrique e Diego sublinha catarses na representação das perdas. Dos perigos também, e são muitos. As personagens vividas pelo trio de protagonistas, numa fricção entre o ontem (a ditadura militar de 1964 a 1985) e o hoje (nas brutalidades policiais contra as populações periféricas), enfrentam uma série de percalços numa luta de afirmação que resvala, todo o tempo, pela vivência da maternidade.      

As figuras estruturadas por elas brotam do repertório de um show feito por Maria Bethânia em 1974, chamado “A Cena Muda”, que trazia em sua superfície um debate sobre o fazer artístico, porém, em seu âmago, de modo implícito, abordava as feridas abertas pelo jugo ditatorial. À época, a cantora flagrava a falta de liberdade de expressão, a censura, a desvalorização da mulher, a rispidez do braço armado do governo. A mudez, naquele momento, era o sintoma que revelava a opressão no zeitgesit de um Brasil militarizado pelo Golpe de 64. 

Com músicas de Chico Buarque, Paulinho da Viola e Gonzaguinha, “A Cena Muda” produziu um daqueles paradoxos transcendentes que só a arte consegue gerar: dar voz ao que estava institucionalmente amordaçado. Essa mordaça de outrora, apontada há 50 anos por Bethânia, deu lugar a uma outra forma de silenciamento nas técnicas de invisibilização das mães que clamam por seus filhos “desaparecidos” (ou explicitamente tombados) nas incursões da polícia em comunidades cariocas. 

São encenadas situações relativas a um 1974 que (como 1968) não acabou, como a história de Ieda Santos Delgado, uma das únicas mulheres negras desaparecidas durante a ditadura militar. Encena-se ainda a busca de Eunice, mãe de Ieda, tentando incessantemente encontrar a filha sumida. Fala-se também de uma série de acontecimentos recentes, como as vidas de Luana Barbosa dos Reis Santos, Cláudia Silva Ferreira, Ágatha Félix e Kathlen Romeu. 

Ao som dos músicos Guilherme Borges (teclado), Tauão de Lorena (guitarra) e Egon Athaydes (bateria), Analu Pimenta, Sirléa Aleixo e H I A N E vivem mulheres que recusaram o interdito do poder vigente. Há aquelas que se impuseram contra os generais, na década de 1970, e há aquelas que, no Rio de 2024, perseveram na busca por justiça contra os agentes que ceifaram um pedaço de suas almas.   O cenário estruturado (com funcionalidade) por Diego e Victor Aragão vira uma geografia de guerra(s). Suas valquírias expõem resiliência em forma de canto, numa tragédia canora de espírito sociológico.  

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