- Publicidade -

Crônica de uma relação passageira: Emmanuel Mouret faz uma versão documental a respeito de desencontros

Publicado em:

A primeira impressão ao ler o título do filme de Emmanuel Mouret é ter encarado algum tipo de spoiler, em maior ou menor grau. No fim da sessão de Crônica de uma Relação Passageira, a sensação passa então a ser de vazio. Não aquele sentimento que brota diante da inexistência de algo, mas da perda que se faz incomensurável após sentir. Sentir, é algo muito latente na obra do cineasta francês, um dos mais assertivos cineastas da atualidade em desenhar a psiquê humana, em desdobrar suas obras em torno de um grupo de ações e personagens que precisam, acima de tudo, da compreensão de quem os existe. Ainda que seus tipos estejam em lados decisórios opostos, o diretor nos faz compreender e empatizar com todos em cena. É como se fosse forjado um compromisso entre artista e espectador, onde um espelho imaginário se posicionasse na obra, e pudéssemos então assistir a nós mesmos, nosso entorno, nossos amigos, nossas relações.

Crônica de uma Relação Passageira

Com maior ou menor inserções de humor, Mouret rascunha todas essas inserções humanas em tela com o máximo de naturalismo possível, o que acaba por destacar sua absorção dos elementos em cena. Nada ali parece fruto de pouca intersecção do autor em realidades muito palpáveis, com uma leitura absolutamente desconcertada a respeito de suas conclusões. Indo para os cinquenta e cinco anos, sua acertada visão acerca dos arranjos emocionais que nos encontramos é verdadeiramente o resultado da maturidade emocional de seu autor, que parece partir de um esboço inicial para um resultado orgânico, como poucos. Em tela, exibe quase uma versão documental a respeito de desencontros entre pessoas que se amam, ou se acham amantes, ou se colocam nessa posição. O que efetivamente são, é um dado que o diretor costuma atribuir a quem assiste, na forma como lê cada um em cena.

Crônica de uma Relação Passageira não conta com uma sinopse necessariamente original, e é justamente o cinema francês que costuma na maior parte do tempo investigar esse arranjo. Lembro de ‘Uma Relação Pornográfica’, onde Nathalie Baye e Sergi Lopez são amantes que apenas se encontram no quarto de um hotel de tempos em tempos, sem perceber que o contrato tácito de “sem maiores envolvimentos” depende do que é racional, e não podemos excluir o sensorial dessa aritmética. Mouret passa a investigar um acordo relativamente parecido, onde Charlotte e Simon conhecem as limitações um do outro. Opostos em muitos sentidos, tratam-se de adultos com restrições mútuas – ela tem um filho, ele um casamento. A partir de algo que deveria ser leve, assim como acordado, o que se desenvolve vem da natureza de homens e mulheres, e não máquinas. Por isso, é tão difícil se prender às regras de um acordo, porque a vida é maior do que qualquer combinação.

Existe delicadeza e cuidado não apenas para conceber tais motivações e desdobramentos de cada personagem, afinal, uma produção como Crônica de uma Relação Passageira é normalmente atribuído valores de narrativa. Mas Mouret é completo em suas aptidões, e o trabalho imagético da produção é tão ou mais esmerado quanto. A maneira como ele os aprisiona em seus planos, para difundir não apenas as ideias, como também o que cada momento representa em cena, é uma marca de seu trabalho. Os encontros entre Simon e Charlotte são costumeiramente desenhados com uma liberdade de campo, de cores e de textura, para acentuar a natureza do que é descrito ali. Igualmente a natureza fugaz dessa relação, mostrada entre câmeras que deslizam com facilidade entre seus focos de planos, para ser enfim encerrada com a proposta frenética de capturar a paixão em sua forma mais indomável. Uma corrida sem fim. 

Esse conceito é seguido à risca pela dupla de protagonistas, vividos com maestria por Sandrine Kiberlain e Vincent Macaigne, seu muso. Não é uma questão cega de interpretação, mas da leitura desconstruída que ambos fazem do que seria o naturalismo, encaixando-se quase como semi-autores em cena. Kiberlain (premiada por ‘Uma Juíza sem Juízo’) é uma força da natureza quando o pedido pelo diretor é exatamente essa mescla de poder realizar dois registros em um, sendo tão suave quanto veloz em sua entrega. Já Macaigne (de ‘A Musa de Bonnard’) mostra a todo momento porque é um dos melhores atores a ser revelado nos últimos 10 anos. A colocação de seu corpo e disposição nesse personagem, tímido, retraído, introspectivo, é praticamente a versão definitiva do tipo, mostrando que talvez ele tenha o rosto de uma geração.

Independente da maneira como se observa Crônica de uma Relação Passageira, qualquer análise do filme deveria apontar a forma sutil com o qual o filme revela uma fatia crescente da sociedade de hoje. Como um retrato fiel das armadilhas que criamos para nós mesmos, independente da nossa postura em relação ao outro, o filme é a reafirmação de Mouret enquanto cronista contemporâneo sobre os múltiplos causos que envolvem o querer, hoje, a partir de pessoas muito ricas de significado. O outro lado da sessão é se identificar tão imensamente com o que é mostrado, e não ter outra alternativa a compreender o todo que não o reconhecimento, a melancolia e, por fim, a certeza de não estarmos sozinhos nos lugares mostrados, nos começos e términos. Acima do amor, se encontram pessoas impedidas de lidar com a vida adulta, e as impossibilidades cotidianas. 

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -