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David Lynch e seu fascínio surrealista

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Quando Eraserhead foi lançado, David Lynch já tinha completado 31 anos. Em 48 anos de existência artística, foram apenas dez longas metragens, e “Twin Peaks“; não precisou de mais. Poucos influenciaram tanto a História do Cinema (e continuarão influenciado) quanto sua obra, que é muito mais diversificada do que convencionou-se declarar. Ao mesmo tempo, essa influência seguirá muito mais emocional do que prática, porque trata-se de uma obra única, cujos predicados não são apenas reais, como quase impossíveis de reproduzir. 

Particularmente, só tive chance de conferir a obra de David Lynch nos cinemas de maneira regular a partir dos seus três últimos títulos. Nada disso impediu que seu olhar fosse crucial para que se formasse em mim um embrião que me traria até aqui, com a humilde missão de falar sobre sua trajetória, e o quanto ele é responsável pela cinefilia que igualmente formou o jornalista e o crítico de cinema que vos escreve. 

Nascido em 20 de janeiro de 1946 em Montana, seus avós migraram da Finlândia e da Suécia para os Estados Unidos no século 19. Por causa da colocação do pai Donald, um cientista que trabalhava para o Departamento de Agricultura, sua família foi obrigada a se mudar muitas vezes durante sua infância, o que contribuiu para sua timidez. Após um rápido namoro, David Lynch casou-se com a namorada Peggy aos 21 anos, e logo posteriormente sua filha Jennifer nasce, que se tornaria cineasta como ele. Ainda em 1967, lançaria seu primeiro curta metragem, Six Men Getting Sick (Six Times), o primeiro de muitos que viria a dirigir durante sua carreira, e o primeiro dos sete lançados antes justamente de Eraserhead.

Aliás, as reações ao filme, muito incensado dentro de sua radicalidade narrativa, desde a estreia foram observadas como um rasgo de autoralidade dentro de uma observação crítica. Comparado automaticamente a Luis Buñuel, a relevância de Eraserhead foi tão imediata que apenas três anos depois, uma major (no caso, a Paramount Pictures) abria suas portas para sua entrada entre os “maiores” , e assim David Lynch correspondeu com o segundo de seus clássicos, O Homem Elefante. Indicado a oito Oscars, vieram daí suas duas primeiras indicações, como diretor e roteirista. 

Talvez tenha sido essa, ainda criança, minha primeira reunião com o cineasta. Tive medo, isso eu lembro bem – a imagem de John Hurt muito maquiado encenando a vida real John Merrick eram planos que demoraram a sair da minha memória. Mas estava de alguma forma semeada ali uma característica que Lynch dominou como ninguém em sua filmografia: a alegoria do medo, representada pelo desconhecido, pela exacerbação do real, pela ilusão. 

Após isso, seu único fracasso, foi reconfigurado ao longo dos anos, a primeira adaptação de Duna, lançada em 1984, foi a última vez, vejam só, que o cineasta conviveu com a incompreensão coletiva, em uma espécie de faroeste futurista. Porém, nem deu tempo de sentir qualquer estrago, Veludo Azul é lançado apenas dois anos depois e com nova indicação ao Oscar e a primeira passagem por Cannes, onde ganharia o prêmio máximo, a Palma de Ouro, quatro anos depois, por Coração Selvagem

Enfim, surge o primeiro registro do Lynch pop como conhecemos, e o que é considerado por muitos como sua obra-prima, “Twin Peaks” trouxe um sopro de frescor à TV americana que não passou despercebido. As duas primeiras temporadas trouxeram muito mais do que a frase ‘quem matou Laura Palmer?’; para um público sedento por dramaturgia, essa foi uma forma de entrar nos meandros de uma cidade amoral, ambígua, cheia de costumes inusitados e personagens sem conceitos morais para reger suas trajetórias. Era uma amostra do que se passava pela sua imaginação sem freios. 

Mas Lynch queria e podia mais. Se nada teria nos preparado para Estrada PerdidaCidade dos Sonhos foi um experimento que nasceu maldito e quase cancelado, para dar lugar ao símbolo máximo do novo milênio no que se refere a cinema de vanguarda. O mundo cinematográfico não seria o mesmo depois de conhecermos a história de Betty e Rita, duas mulheres que se conhecem em circunstâncias surreais para estabelecer um elo crescente que revela um tanto sobre Hollywood e sua máquina de aparências. É muito mais do que isso, na verdade, o que não é nenhuma surpresa para quem conhece obra e autor, de um lado o retrato mais referendado acerca do Cinema nos últimos 25 anos e do outro… bem, seu Criador. 

Aliás, minha primeira sessão de Cidade dos Sonhos, foi em maio de 2002, certamente, revelador de uma imagem de futuro, pra mim. O cinéfilo que se arriscava já existia bem antes da estreia brasileira do filme, mas através dessa sessão é que todas as conexões foram enfim desenhadas e definidas. Perdi a conta de quantas vezes assisti Mulholland Dr. (seu título original), a mais recente no ano passado na melhor tela possível. É através desse filme, e da genialidade de seu diretor, que consigo regularmente tornar a me encontrar, perceber o cinéfilo que há em mim, e através dele me reconfigurar para uma próxima temporada. 

Ainda teria uma sessão no Festival do Rio sentado no chão para conferir Império dos Sonhos – um filme que merece e clama por uma redescoberta – e, bem antes do apagar das luzes, a Netflix foi a responsável por suas últimas teclas de audiovisual, e nada foi o mesmo (mais uma vez) após a derradeira temporada de Twin Peaks, talvez o evento cinematográfico mais comentado do ano em 2017 – sem ser necessariamente cinema. E ainda assim, sendo em absoluto. 

Hoje, Lynch nos deixou depois de relatar uma luta contra um enfisema causado pela nicotina irreparável. Ao repetir que não existirá outro como ele na História do Cinema, é aceitar que não teremos uma mínima porcentagem de sua originalidade no corpo, mas também perceber que sua sua filmografia não cabe em qualquer escopo que seja. É maior que agregadores de notas, que premiações e que quadros de consulta; maior que ‘finais explicados’ e maior que alguma definição possível. Sua contribuição é da altura do que fez David Bowie na música, Liv Ullman na atuação, Salvador Dalí nas artes plásticas, Stephen Hawking na ciência. Sem que qualquer um ousasse ou conseguisse lhe “pedir emprestado”, está na veia de quem o assistiu, sua permanência. 

No entanto, hoje, silêncio. No hay banda. 

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