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“O Bem-Amado” arranca gargalhadas com reflexão sobre o poder

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Eufrazino Puxa-briga, aquele caubói de bigodão frondoso sempre na cola do Pernalonga, é a primeira alusão à cultura Pop produzida pela atual montagem de “O Bem-Amado”. Lembra-se dele quando Diogo Vilela entra em cena, hilário, esbanjando velhacaria, no papel de Odorico Paraguaçu. Pedro Stamford e Ronald Teixeira embalaram a Sucupira dos anos 2025 qual um (bom) desenho dos Looney Tunes. A profusão de cores na cidade em que ninguém morre é dionisíaca, fazendo jus (na realidade) à ideia de um recanto para veranistas no litoral baiano e (na ficção) à herança estética da versão desse texto de 1962 para a TV, em 1973. 

A cenografia dessa dupla, esculpida no cinzel da inteligência, leva a gente a uma ambiência similar às animações da Warner Bros., na qual o Dirceu Borboleta de Tadeu Mello faz lembrar (em sua inocência) o Gaguinho. Só não temos bigornas Acme caindo do céu. A ironia cortante da escrita de Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999) cumpre esse papel, simbolizando o inusitado da vida, que cai na cabeça de um Brasil acossado por espertalhões empossados, nas urnas, pelo populismo.

Publicado na revista “Cláudia”, em 1963, numa seção de contos, e encenado em 1969 pela trupe Teatro de Amadores de Pernambuco, no Recife, “O Bem-Amado” deriva de um caso real, ocorrido numa cidadezinha do Espírito Santo, narrado a Dias Gomes pelo jornalista Nestor de Holanda (1921-1970). Em terras capixabas, um alcaide teria sido eleito com a promessa de abrir um cemitério para seus conterrâneos, mas se deparava com um problema político: não tinha a quem enterrar, pois o índice de mortes no local caiu. Havia ali um enredo mais estranho do que ficção, e ele logo virou peça.

Odorico tornou-se o anti-herói síntese do repertório sociológico de Dias Gomes em sua tipografia de vivências nordestinas (acrescente nelas o Zé do Burro, de “O Pagador de Promessas”), que servem como metáfora para as contraindicações morais da torpeza política em nossa gênese como nação. A Bahia está ali (como recorrentes menções a Salvador), o Nordeste está ali, mas há um apanhado do país como um todo, sobretudo na constante aparição do arquétipo do “pai do povo”. O paternalismo de Odorico é condensado com fina esperteza crítica por Vilela em seu ar de (suposto) protetor de seus agregados. Esse tom traduz uma moléstia crônica em nossos governantes. Um mal em metástase. 

Na década de 1970, em plena Ditatura, a TV Globo conseguiu fazer o Brasil rir (como catarse) do engenho populista ao levar Odorico à telinha, como telenovela (e depois série), apoiada no talento do titã Paulo Gracindo (1911-1995). Ele apostava num tom bufo para compor uma espécie de saruê que roía as beiradas do Poder, mantendo-se firme no controle, a prometer mil utopias. Prometeu aos sucupirenses um campo santo onde os mortos daquele local pudessem ser enterrados, sob as benesses do sono perpétuo, no lar de berço. Seu dilema é não ter cadáveres. 

Em 2007, Marco Nanini viveu Odorico em adaptação de “O Bem-Amado” para a TV , com direção de Guel Arraes. Além disso, Guel e Nani fizeram um filme de Odorico em 2010, exibido na abertura do Cine PE de então. Nanini encontrou uma verve neoliberal para o senhor feudal de Sucupira, investigando as entrelinhas escusas de seu discurso. 

Parceiro recorrente de Vilela nos palcos, a começar de “Solidão, a Comédia” (1991), o diretor Marcus Alvisi encena “O Bem-Amado” a cruzar com essas duas referências históricas – a de Gracindo e a de Nanini – sem trombar com nenhuma, fazendo de seu astro rei um aríete para abrir caminhos. Encontra (e desbrava) veredas mais cartunísticas, impondo uma identidade (visual sobretudo) própria, de um timming suíço em sua precisão. Nenhuma deixa cômica se perde. Toda piada se valoriza. Cada um no elenco acha seu lugar de brilho, seja nas entradas mais sazonais (como a de Rollo Roquenrolo) ou nas presenças mais constantes, caso da sempre afiada Rose Abdallah (vivendo Judicéia Cajazeira) e de Ataíde Arcoverde como um descansado coveiro. 

Cabe a Chris Penna a missão de reinventar o matador Zeca Diabo (outrora Lima Duarte), o que, aliás, não é uma tarefa simples. O ator encontra um coeficiente de leveza para humanizar um estraçalhador de gente ruim, invertendo miradas moralizantes da sociologia. Já Tadeu Mello usa o vasto ferramental cômico que tem para relevar as angústias existenciais do servidor público Dirceu Borboleta. O astro fez parceria com Vilela na dublagem nacional da franquia animada “A Era do Gelo”. Fazia a voz da preguiça pré-histórica Sid, enquanto Diogo dublava o mamute Manfred. Juntos agora noutro âmbito, num microcosmo da mixórdia de quem manda, eles divertem o público (e muito) numa reflexão sobre o preço que se paga pela manutenção do trono nas quebradas de um mundaréu onde o ethos da lei é farinha pouca.

Vale muito a leitura do livro “Odorico Paraguaçu, O Bem-amado de Dias Gomes – História de um personagem larapista e maquiavelento”, escrito por José Dias para a Imprensa Oficial, como um complemento da montagem de Alvisi. 

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