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“Meu Caro Amigo” arrebata corações pelos acordes da brandura

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Que ouse atirar a primeira pedra contra “Meu Caro Amigo” quem nunca deu um beijo na boca ao som de Chico Buarque. Que se encrespe contra sua leveza quem nunca levou (ou deu) um xêro no cangote com a estrofe “na desordem do armário embutido/ meu paletó enlaça o teu vestido” numa FM ou AM qualquer. Que zangue contra essa colagem de afetos (meio peça; meio pocket show) com Kelzy Ecard, quem nunca segurou a mão do ser amado ouvindo “meu corpo é testemunha do bem que ele me faz”. 

Quem nunca chorou um pé na bunda na batida dos versos “Deixe em paz meu coração/ Que ele é um pote até aqui de mágoa” poderia até ficar indiferente ao desempenho de Kelzy. Mas olha que é difícil. É tarefa árdua achar uma alma brasileira que nunca escutou o menestrel por trás de “A Banda” no rádio, na vitrola, na TV, no Spotify, nas fossas e nas bossas do querer. Seu legado traduziu as incertezas de toda uma nação acerca daquele abraço que parece abrigo. Até porque, Chico Buarque já caiu no vestibular, já virou questão do Enem, inspirou dissertações e teses, foi assunto de mostra de filmes (baseados em seus livros e letras) e cimentou múltiplos musicais. Alguns tinham produção GG; outros tinham engenharia mignon. Cada qual no seu quadrado, com Chico por todo lado. Ele ganhou esta pátria na própria voz ou pelo gogó de outrem, em seu mar de intérpretes. Kelzy é uma delas. Em sua goela, Chico soa mais doce.
  
Há 15 primaveras, a cantatriz arriscou revisitar o repertório do bardo num monólogo cheio de canto. O efeito analgésico gerado por esse experimento, batizado de “Meu Caro Amigo”, deixou saudade. A aspereza dos tempos de hoje abriu brecha para que ele voltasse, renovado, com o esplendor cênico que Kelzy depurou ao longo dos anos de serviços prestados aos palcos.

Aliás, o maior acerto desse regresso é a opção da dramaturgia de Felipe Barenco em promover um estudo aprofundado de personagem. A estrutura de jukebox de seu texto é a forma que a gente tem de comungar sentimentos com Norma, uma professora de História cujo entusiasmo pelo cancioneiro buarquiano começa em seus dias de menina, ao largo do Golpe 64. Vivida por uma Kelzy toda pimpona, Norma é uma amadora profissional: ama as amigas; ama o pai; ama o magistério; ama as Ciências Sociais; ama o namorado que lhe faz companhia por anos a fio, num grude doido; mas ama sobretudo seus LPs. 

Frases melódicas como “e pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz” fizeram com que ela amasse Chico. Fez dele seu farol para resistir em devires revolucionários e para ser resoluta na hora das perdas e das escolhas. Chico é o espelho de suas apostas e de suas renúncias. É a miríade do Brasil que sonha construir. É o amortecedor para as vezes em que a vida não soube vive-la com finesse. É a gordura de suas guloseimas líricas e a safadeza de seus prazeres mais íntimos. É a apoteose de seu carnaval. 

Norma transcende normas e normatiza lirismos. Entendemos esse processo pela estrutura delicada que a encenação conduzida pela diretora Joana Lebreiro toma para verticalizar os anseios e as inquietudes de sua protagonista, numa atuação danada de linda de Kelzy. A forma como a estrela expõe as fragilidades de Norma pelas vias da sutileza traduz sua inteligência no garimpo das pepitas que a escrita de Barenco oferece.
Sempre que Norma brinca de pardal e cantarola, Kelzy está bem acompanhada do pianista João Bittencourt. Seu dedilhar amplia a serenidade de uma encenação que cozinha a passionalidade presente em Chico no fogo da brandura, sob a direção musical de Marcelo Alonso Neves. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros segue essa toada serena, num rastro apolíneo. É peça pra suspirar. 

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