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Flow é prodigioso, com um magnetismo natural que nos ocupa uma parte do trajeto

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Não é nenhuma novidade que, há algumas décadas, as animações deram um salto qualitativo em comparação ao que era feito nos clássicos de outrora, fossem elas gestadas sob o comando de Walt Disney ou viessem de qualquer outra parte do mundo. Mas ainda impressiona o que é alcançado a cada nova estreia, e não estou falando no campo narrativo – não apenas. Vejamos o caso de Flow, um caso raro de filme indicado aos Oscars de melhor animação e filme internacional, conseguido anteriormente por Flee Valsa com Bashir (esse segundo, ainda mais raro, pois somente indicado na categoria estrangeira). Estamos aqui diante de um filme que prega uma peça no nosso sistema cognitivo, porque enxergamos algo que não existe.

Flow é escrito e dirigido por Gints Zilbalodis, que está em seu segundo longa-metragem após uma série de curtas bem sucedidos. O filme é uma produção da Letônia, que conseguiu uma projeção nunca vista antes (aliás, é a primeira vez que o país é indicado ao Oscar, por exemplo), e cuja empolgação pode parecer estranha, mas isso só é pensado até o encontro com a produção. Rapidamente fica claro que não estamos diante de um título qualquer, mas de um filme sedutor que nos conecta a um grupo de animais sem torná-los humanos. Ou seja, o que nos acostumamos a ver em qualquer outra animação, não está aqui; na verdade, o contrário dela do habitual é apresentado, em todos os sentidos.

Zilbalodis consegue nos fazer cúmplices, testemunhas e participantes, ao mesmo tempo, de um processo intenso. A princípio, acompanhamos um gato preto que foge de uma matilha de cães disposta a tudo para capturá-lo; o ambiente é uma ilha aparentemente habitada por animais. De repente, uma enchente de proporções devastadoras atinge a ilha, obrigando a se abrigar em um veleiro junto a um lêmure e uma capivara, que serão também acompanhados por um labrador que seguia o gato. Em linhas gerais, Flow é isso, com a simplicidade necessária para que cada espectador consiga se deixar levar pela narrativa, uma espécie de luta desenfreada pela sobrevivência em meio a uma existência onde a comunicação é adquirida de outras formas que não a verbal. 

Como já dito, Flow não é uma animação como outra. A começar pela ausência absoluta de diálogos, os protagonistas da produção se comunicam como animais o fazem no mundo como conhecemos. Tudo é instinto e impulso, tudo é ação e reação, são espécies distintas que precisam vencer suas diferenças sem a ajuda providencial da fala, em um lance onde até mesmo outra obra-prima, Robô Selvagem, dribla para contar sua história. Em determinado momento, estamos tão intimamente ligados àquele grupo, que também nós trocamos olhares com cada um deles, na busca de uma compreensão cuja validade é decidida pelo subjetivo. Qualquer estranhamento em relação a isso se dissipa quando também o espectador passa a lidar com seu próprio traço de subjetividade para acompanhar tal jornada. 

O cinema foi um evento criado sem o benefício do som, e o autor de Flow nos leva a um estudo comportamental que prescinde de uma camada sonora essencial para o entendimento entre os seres. Ainda que a banda sonora esteja intacta no filme, e torne todo o contexto ainda mais fascinante, o filme claramente tenta nos colocar em uma metáfora para a falta de diálogos em guerras, conflitos de pequeno ou grande porte e desavenças separadas por diferentes lados, sejam os motivos religiosos ou geográficos. A beleza da construção gradativa daquele grupo suspeito em suas decisões que, quando menos esperamos, estão tomando atitudes em prol do coletivo, é de profunda delicadeza, onde sua dramaticidade nunca soa aguda. 

O grande diferencial apresentado por Zilbalodis, no entanto, é em tudo que diz respeito à animação, propriamente dita. A leitura visual feita por cada personagem, a maneira como eles se entregam a interação através de comunicação não-verbal atinge muitos graus de sofisticação, porque são preposições animais, acima de tudo, mas que nos mostra nossa ligação ancestral com o reino animal. Flow ainda consegue empregar vários subgêneros cinematográficos em um universo gráfico sem igual. Porque nos pegamos impressionados como “as câmeras seguem em desabalada carreira seus personagens em perseguições, sequências de ação, para desvendar cenários extasiantes”… só que, vocês recordam que estamos diante de uma animação, não é mesmo? Logo, o que define tudo isso é o meticuloso trabalho de montagem de planos animados, que transforma tal animação em um filme que, como já dito, embaralha nossas sinapses. 

Além disso, existe todo um campo para ser explorado pela imaginação, a respeito da origem de tudo o que vemos, uma ilha habitada por animais, com esculturas de gatos gigantes em madeira, produzidas em uma casa cheia de ferramentas para o trabalho. O que significa tudo isso? Flow é prodigioso no que tem a dizer e na forma embasbacante com o que tem a mostrar, mas o que ele esconde tem um magnetismo natural que nos ocupa uma parte do trajeto. Logo, a investigação coletiva parece muito mais instigante, nos deixando levar pelo maravilhamento de tudo que o forma. 

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