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“Migrantes” é um épico exuberante sobre êxodos, errâncias e esperanças

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Onipresente no radar do cinema desde o Urso de Ouro dado a “Fogo no Mar” (2016), documentário de Gianfranco Rosi, o trânsito marítimo de refugiados que zarpam de países d’África e do Oriente Médio – em busca de uma utopia chamada aceitação – hoje dá um banho de descarrego no teatro brasileiro com as ervas da perplexidade e da empatia fervidas no calor de “Migrantes”. Em seu exercício mais ousado (e de maior destreza) na direção, Rodrigo França, certamente, faz a oferenda de um épico transatlântico aos palcos nacionais. É o épico do pertencimento. 

A equalização de um elenco de muitos saberes e múltiplas potências (com uma apoteose para Paulo Guidelly e Mery Delmond) já seria, em si, razão para se bater cabeça para o diretor, no desbravamento dos signos ofertados pelo texto do romeno Matéi Visniec, nascido em Rădăuţi em 1956 e asilado em terras francesas desde 1987. Aliás, o que mais se impõe no trabalho de Rodrigo, entretanto, é a confecção de um engenho cênico galvanizado pela iluminação de Pedro Carneiro, dionisíaca no trato da luz e na valorização das cores nos figurinos de Vania Ms Vee.

Nessa engenharia, diferentes espaços (geográficos) e diferentes tempos cronológicos (do Presente, pois o perigo está aqui, no Agora) se equilibram. Tem ainda espaço para dois divertidos reclames publicitários, nos quais a microfísica do poder midiático é sintetizada em propagandas cantadas por um trio de mulheres que vendem a Morte em embalagem de luxo.   

“Migrantes” transpira Visniec! Em sinergia com um depoimento recente do dramaturgo responsável por “A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais” (2000) para a revista “Cult”, ele comenta, “O consumismo tornou-se uma religião devoradora, que contamina mesmo os espíritos mais lúcidos, e parece uma espécie de doença, de vírus que infectou a imaginação de bilhões de pessoas”. Não à toa, signos de fé são evocados com recorrência na montagem de Rodrigo. Afinal, como dizia o sociólogo Jean Baudrillard, “Deus não desaparece pela escassez, mas por excesso”.  

Se Deus, seja o ente do monoteísmo bíblico, sejam os deuses (aqueles que dançam) de credos afins, é, na prática, “solidariedade”, Ele, de fato, é estrutura ausente nos exercícios de coerção e controle flagrados em “Migrantes”. Na adaptação de Visniec (a partir de tradução de Luciano Loprete), Rodrigo não acentua vitimismos, pois frisa mais as correntes que agrilhoam quem vai Oceano adentro em diáspora imposta por segregação econômica ou guerras (vetores gêmeos). 

A brutalidade condensada como açoite na atuação (devastadora) de Alex Nader, tanto como o chacal que dá instruções à horda de “migrantes” do título quanto numa metáfora de Donald Trump, serve como medida para as tais correntes, simbólicas, que Visniec deslinda em sua cartografia de submissão. Igualmente brutal é a fricção nietzschiana do paralelismo entre ave rapina e cordeiro criado em cena pelos personagens de Anderson Cunha e o já citado Guidelly, notáveis num duo que traduz o paradigma dominador x dominado em goles de Coca-Cola. 

Elihu, vivido por Guidelly, é o eixo de personalismo mais visceral do espetáculo, criando uma espécie de âncora de afeto (doído) para a narrativa. A maioria do elenco se divide entre arquétipos (de maternidade, de ancestralidade, de dominação, de resiliência), enquanto Mery Delmond engole a cena como comentadora, cronista e griot da catástrofe (des)humana de uma migração sem garantias de chegada e, menos ainda, de acolhida. Afinal, como disse Visniec: “eu denuncio a tendência das pessoas de se cercarem de farpas, de se enclausurarem por medo do outro”.

Elihu é doce no trato e ama a mãe sobre todas as coisas, assim como seus irmãos e vizinhos. O olhar de Guidelly traduz o sentimento (ou prudência) que Sergio Buarque de Holanda chamava de “cordial”. 

Ele é um africano nascido na Eritreia, país no nordeste da África, que ganhou mais evidência na mídia, de uma década para cá, quando o supracitado “Fogo no Mar”, concorreu ao Oscar, em 2017. Seu diretor, Gianfranco Rosi, é eritreu. Branco, de ascendência italiana, educado nos EUA, ele documenta em seus filmes (como “Sacro GRA”) dialéticas da impostura, sobretudo aquelas que a Europa de pretérito colonial impõe aos refugiados nas boas-vindas.     

Além disso, Rodrigo França está atento a isso também, mas amalgama essa preocupação ao debate da racialização também presente em “Para Meu Amigo Branco” e em “Eu Sou Um Hamlet”. Expõe o marcador racial que inflama a intolerância de modo estrutural (ou como diz Muniz Sodré, institucional) por trás das políticas migratórias globais. Daí a cordialidade de Elihu ser manipulada pelo chacal que ajudou na sua vinda e se comporta como seu feitor.           

A figura interpretada no ácido sulfúrico por Anderson Cunha seduz Elihu com promessas para que ele troque um rim por benesses para seus parentes e faça escambo com seu olho a fim de conseguir um mimo qualquer, usando refrigerantes pra adocicar o bico de sua retórica canibal. Os dois permitem que França desnude uma prática exploratória antiga, mas perene. 

Esse jogo, que descamba para a violência (sempre ela!), aproxima “Migrantes” de um filme seminal, ainda inédito por aqui: “O Caso dos Estrangeiros” (“A Stranger’s Case”), de Brandt Andersen, com CEP na Jordânia. Exibido na Mostra de São Paulo de 2024, esse drama coral lembra “Babel” (2006), uma vez que o conflito de um segmento afeta o outro. 

Ganhou o Prêmio da Anistia Internacional pela forma feroz com que expõe a batalha de um grupo de pessoas para escapar da violência na Síria, incluindo uma médica e um soldado filho de um herói local. Um mercenário interpretado magistralmente por Omar Sy (“Lupin”) cruza o caminho de todos, com seu caráter nada louvável.

Sempre tem um tipo desses, como o cão estraçalhador interpretado por Nader, a latir ordens. Esses latidos se fazem ouvir já no foyer do Teatro Sesi Firjan, antes de o terceiro sinal tocar, a dar tridimensionalidade a uma encenação que foge da geometria do palco. Nele, os corpos que se movem sobre a direção de movimento de Valéria Monã, embalados na trilha de Dani Nega, encontram um lastro de ancestralidade na direção de arte e cenografia de Mauro Vicente, que é um quindim para os olhos e para a jira que ali se abre. 

Nessa jira, Rodrigo demonstra que a esperança é um vício. Ao contrário da vingança, que nunca é plena, mata a alma e a envenena (como Seu Madruga, dublado por Carlos Seidl, nos avisou), a esperança dá overdoses que sublimam. “Migrantes” sublima um monte de coisa, mas finca no terreiro de teatro a lucidez (decolonial) de um criador em tempos de cólera. 

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