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“Eddy” faz imersão visceral na prosa de alerta de Édouard Louis

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Partindo-se da premissa “Herói é o cabra que não teve tempo de correr”, cantada por Arnaud Rodrigues (1942-2010) no LP “Baiano e Os Novos Caetanos” (1974), Édouard Louis é um vigilante (sem máscaras e sem fator de cura) do desenraizamento. A palavra é, certamente, seu super poder. Dela o francês egresso de Hallencourt esculpe frases que (des)matam (“Vivi o mundo como uma injustiça porque eu não tinha escolhido ser o que era”. Das frases, faz livros, entre eles “O fim de Eddy”, “História da violência” e “Mudar: método”, reunidos (e filtrados) agora, no Brasil pós-Bolsonaro, por Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky, em forma de uma peça mutante. 

Já que o papo aqui começou com referências a superseres das HQs, esse tal espetáculo, “Eddy – Violência e Metamorfose” (que é, surpreendentemente, uma pancada no quengo!) pode ser entendido como sendo uma espécie de X-Man teatral. É cena, é filme, é performance, é jira, é choro. 

Tem mais Leos Carax ali do que Eurípedes. Caberia a Santos de Plínio Marcos (1935-1999), em sua inteireza, na quebrada daquele mundaréu que é a Paris de Louis revista pelos encenadores. A pancada que estanca por lá não é por pisantes, como se via em “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1966), pérola de Plínio, mas por um celular (repleto de fotos de valor afetivo) que parece surrupiado durante uma noite de sexo – retratada em cena com elegância estroboscópica. 

Naquela Metrópolis sem Kal-El, o amor é kryptonita. O verbo “amar” é luxo. Ele não apenas bambeia pernas, mas amolece sintagmas sociológicos. Não à toa, Luiz Felipe e Grabowsky, na construção dramatúrgica de “Eddy”, imbuídos de Louis, adotam o Prêmio Nobel húngaro Imre Kertész (1929-2016) como epígrafe (que vai não no começo, como via de regra, mas no clímax). Tiraram desse autor, conhecido cá por “Liquidação”, a certeza de que “viver é outra forma de nos matarmos a nós próprios: a desvantagem é que é um processo horrivelmente longo”.  

Plateias que têm ventre nos olhos (ou seja, dão à luz tolerâncias) vão dizer que “Eddy” fala de pulsão de morte. Seu personagem central transpira (no palco) os escritos de Louis, num amalgama entre mimese e projeção, cozido em ácido sulfúrico geopolítico por um João Côrtes em ebulição. Ele parece buscar o fim. Recebe um estranho em seu quarto e quando percebe o quanto o sujeito é agressivo, embarca (mesmo acuado) numa ciranda de cobranças buscando aquele tal celular de dois parágrafos acima, que havia “sumido”. 

Cobrar é pedir para morrer no contexto de alcova de solitários que apenas querem o abrigo de um abraço e um gozo. Naquele espaço, um crime sexual esgarça repressões antigas. Era Natal, afinal, e com ele o sangue pisado da rejeição revivifica, goteja angústias que emudeceram. Se estamos diante de uma peça que conversa com relatos literários, nada mais justo que vozes se expressem, e pela dor. Como disse Louis à “Veja”: “A literatura não é confortável ou aprazível”.       

A visão do jovem Louis, um menino lá do interior, entregue ao prazer nos braços de um crush desconhecido, na erupção vulcânica que Côrtes faz diante da gente, evoca mesmo o fetiche da morte. No entanto, o que Luiz Felipe e Grabowsky geram é um efeito Denorex: parece, mas não é. O Édouard Louis da peça, que vem de volta a Hallencourt, não quer morrer; quer ser.

Que conste dos autos: “Escrever uma autobiografia é, na verdade, sumir”, disse o escritor à “Veja”, deslindando a potência da invisibilidade que, desde a Modernidade, reside em que está nas multidões. Na capital da França, ele é “mais um”, só. Não é mais o rapaz de uma cidade pequena onde sua orientação sexual desperta sons (xingamentos) e fúria. Na metrópole, ele apenas é, sem chamar atenção, com direito a amigos, dos bons. Mas isso tem custo. Dói.  

Na peça “Deserto”, ao passar em revista o desterro do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) na errância de uma América Latina carente de Pangeias (ou seja, de conexão entre povos), Luiz Felipe já esboçava o sentimento de expressar vozes literárias que se desenraizam para buscar pertencimentos, ainda que provisórios. Interessa-se por autores de uma prosa “autogeográfica” com o mundo.

Aquela centelha de “Deserto” faz fogueira de São João em “Eddy”, no qual ele e Grabowsky estudam a coragem dos que (se) mudam e ainda encontram modos de amar no percurso em busca do que de fato são. O multipremiado filme semidocumental português “A Metamorfose dos Pássaros” (2020), de Catarina Vasconcelos, talvez seja o melhor companheiro de jornada de “Eddy” para entender a Europa que gerou Louis. A Europa, as Américas, a Cabília argelina citada na peça e este Rio de Janeiro cheio de feudos. 

Achado de uma Berlinale pré-covid, o longa-metragem de Catarina fala de aceitação, de si e do outro, a partir de um corpo que se molda a desejos (e saudades), sob a ótica de uma relação de filha e pai que se reencontram. Em “Eddy”, não se falam docemente da paternidade, pois o pai do personagem não tem “lugar de escuta”, numa homofobia indisfarçável. Fala-se, em vez disso, de fraternidade, na conexão entre o homem interpretado com fôlego de bisonte por Côrtes e sua irmã, Clara, um algodão entre pedras brutas, vivida por Julia Lund num jogo da amarelinha entre narração, interpretação (semiótica) dos fatos e vivência. 

Sob uma iluminação à moda “Betty Blue” (filme “delicinha” de Jean-Jacques Beineix) feita por Julio Parente Para Raio, Clara, a personagem que Julia algodoa em cena, é o Mertiolate que serve de antisséptico (mas não de cura) às feridas de um irmão que largou Hallencourt – onde corria com ela por corredores de supermercado – para tentar a vida em Paris, como escritor. Lá, passa uma noite de Natal com um estranho, o argelino Redá, que Igor Fortunato interpreta a partir das brasas da História, numa evocação da exclusão de quem é imigrante, de quem é rotulado “árabe”. Dele, vem violência, que é o tema central de “Eddy”.

Depois de agredido, Eddy procura ajuda e encontra acolhimento numa servidora pública da Saúde (também vivida por Lund, com a sacarose certa). Conta o que sofreu à Lei, num segundo papel de Fortunato (sempre impecável). Falar não o alivia. Cicatrizes existenciais não deixam, mas geram comichão, o da escrita (de si). Ele escreve para ser. Escreve para que outros não se sintam só.    

Soa curioso que um trabalho (tão maduro) da Polifônica — a companhia criada por Lund e Luiz Felipe – esteja em cena no Rio de Janeiro na mesma época em que nossos cinemas discutam o “emasculamento” com “F1: O Filme”, um candidato a blockbuster com Brad Pitt a brincar de Paul Newman em carros de Fórmula 1. É um filme bom, tá! Mas o ponto aqui é outro: são as conexões contingenciais (temáticas) da arte. No longa, a virilidade refutada por uma sociedade que considera a hombridade fora da validade gera desapego e faz do desterro o destino inescapável para os que vivem da tradição. Em “Eddy”, o capitalismo, com a lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, estrangulou o que era tradicional e só deixou, para enterro dos ossos, o preconceito, sem glórias.

Os homens que se emasculam ficam para o cinema. O Eros de Louis é a vontade de viver. Seu mundo é de gente pobre, é de gente que trabalha, é de gente que circula. É um universo queer que mata um leão por dia não só no trabalho, mas na dinâmica da segregação. “Eddy”, nesse recorte social, não é uma aliada. Uma peça de alarme, que viceja engenho no jogo com a projeção de imagens, com seu hibridismo entre artes cênicas, as tecnologias cinematográficas e os romances de Louis.      

Das frases lindas, do muito de lindo que a literatura desse pilar de uma nova prosa (identitária) gerou, vale destacar o aforismo “Perdão e amor são coisas diferentes”. Seus livros desnudam a metástase maior da opressão capitalista: “Como uma corrente elétrica, passamos a violência para outros”. A peça “Eddy” não pode conter a evolução desse câncer, mas faz dele poesia (de alerta).

Que se destaque a direção de movimento de Lavínia Bizzotto, somada à preparação corporal trazida por Alexandre Maia a um elenco em plenitude, no qual Côrtes se lança do trapézio da ousadia sem redes. 

Saiba mais sobre a peça!

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