- Publicidade -

‘Hair’ penteia as lêndeas da intolerância e enxagua a cultura hippie em águas políticas 

Publicado em:

Voraz, a alvorada woke que pasteuriza a tolerância usando empatia como desculpa não teve peito para dispersar o colorido lisérgico de “Hair”, na releitura de Charles Möeller & Claudio Botelho. A força política na gênese do musical, certamente, permanece, sem ceder aos modismos atuais, galvanizada numa montagem de múltiplas destrezas, a começar pelo afluente do riso, aberto com a escalação de Tati Lopes, e pelo vulcão easy rider chamado Rodrigo Simas, em erupção.  

Zé-pereira ao quadrado do teatro canoro, a dupla Möeller e Botelho contextualiza hits como “Let the Sunshine In” ao planeta pós Covid-19. Aliás, a nova montagem é mais (e melhor) do que tradução, trazendo sintonia com as exigências comportamentais do Presente. É o bom e velho “Hair” na lupa de 2025, com uma deslumbrante cenografia de Nicolás Boni que não o desterra. A realidade está lá.

Perfumado a agente laranja, o mundo que gerou “Hair”, cinquenta oito anos atrás, acompanhava pela TV e rádio as investidas fardadas dos Estados Unidos nas selvas vietnamitas, entre 1965 e 1973, amadurecendo a rajadas de balas os garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones. Hoje não se fala mais em napalm. Os Quatro Rapazes de Liverpool estão virando filme pelas mãos de Sam Mendes. Mick Jagger, super pop, já rolou suas pedras nas areias de Copacabana, em shows por aqui. Ainda assim, a peça que analisou antropologicamente o hipismo voltou. 

Enquanto metralhadoras cuspirem, “Hair” há de voltar. O Rio de Janeiro que lastimou a morte de Marielle Franco, em 2018, precisa dela, pois chora dia a dia as baixas inerentes à metástase das milícias e ao alastramento do tráfico. Áreas que eram dos Comandos da droga hoje são tomadas pela farda da corrupção. Mundo adentro, o choro ensurdecedor da Ucrânia e da faixa sem gazes de Israel e Palestina faz eco planetário. Daí a urgência dos versos de “Aquarius” “Harmony and understanding/ Sympathy and trust abounding”, adaptados por Botelho.     

As letras de Gerome Ragni (1935-1991) e James Rado (1932-2022), embaladas por Galt MacDermot (1928-2018), são como penicilina no contágio institucional da violência. Durante o reinado de minions no Palácio do Planalto, antes da pandemia, nas polarizações de 2018 a 2022 no país, essas canções ficariam perdidas. Agora, elas voltam a ser um hinário de paz e um clamor de alerta, revisitadas em modulações vocais inspiradas como a de Estrela Blanco e Drayson Menezes e no Exu chamado Berger, papel de Simas.     

Que o ator andava por aquela fase profissional que separa as promessas das certezas, “Prazer, Hamlet”, encenada por ele em 2022, já não deixava dúvida. O Beto da novela “Boogie Woogie” (2014) e o Chitão da minissérie “As Aventuras de José & Durval” (2023) foram importantes para sua estrada, mas ficaram para trás, num processo evolutivo – bonito de ver – aberto ao risco.

 “Hair” é o atestado de vitalidade de Simas, já vislumbrado no filme “Viva a Vida”. Passa o xampu da ousadia numa cabeça que pensa as representações do masculino num momento de abalo sísmico para os arquétipos clássicos. Daí a importância de Berger, homem que é bicho. 

É ele quem conduz “Hair” em sua mirada antiaderente (a acomodações) sobre a microfísica do ódio praticada na meiuca da década de sessenta (e ainda vigente), quando os galetos ao belo canto da juventude dos EUA eram convocados ao alistamento. Seu parceiro entre os malucos-beleza da América, o existencialista Claude (Eduardo Borelli, em fina atuação), recebe uma carta dessas e precisa partir, para lutar. Ali, o bode de uma geração faz marola. Ao retomar esse fumacê histórico, Möeller e Botelho não batem cabeça para catarses clássicas do Pop, eles abraçam o trágico e amargam o caldo. O ácido da História bate.         

A versão deles é vívida e autoral. Fará gosto aos que esperarem as canções consagradas, mas posiciona Berger num flanco mais reflexivo, arejando o arranjo com as tiradas de Tati. São felizes ainda em driblar nós que o cinema embolou em “Hair”, preservando o brado: “Faça amor, não faça guerra!”.    

“Hair” nasceu teatro, off-Broadway, em 1967, doze anos antes de ganhar as telas. Surgiu como um espasmo do zeitgeist antimilitarista que cercou as campanhas americanas pela Ásia, desde a Guerra da Coreia, nos anos 1950, até as ofensivas em Saigon na década de 1960. 

Apesar de seu êxito (comercial, inclusive) sob as ribaltas, até as da Broadway, acabou ficando mais famoso pela transposição para longa-metragem dirigida pelo tcheco naturalizado estadunidense Jan Tomás Milos Forman (1932-2018), o mesmo que, há cinquenta anos, presenteou a Terra com “Um Estranho No Ninho”. Seu cinema pensava inadequações, sempre, quiçá a falta de adequação dos hippies à pátria que se abriria aos yuppies, às custas do World Trade Center. 

Idealizada em 1964 e estruturada ao longo de três anos, “Hair” estreou em 17 de outubro de 1967, no Public Theater de produtor Joseph Papp (1921-1991), no ardor dos protestos flower power. O já citado Gerome Ragni era Berger e Walker Daniels viveu Claude. Ficaram seis semanas em cartaz e, em 1968, os teatrões da Rua Larga absorveram o projeto. 

Quando virou filme, a sanha revisionista de Hollywood, à esquerda do histórico político daquela nação, já estava arrefecida. Ainda assim, o desempenho de um Treat Williams (1951-2023) cabeludo e doidão como Berger no écran se superpõe a tudo o que as artes cênicas fizeram da matéria-prima “bicho-grilo” que inspirou a peça.

Treat serenou faz pouco, mas sua atuação ficou nas retinas. Malandramente, Simas não se deixa intimidar por ela, apoiado na direção musical ribombada por Marcelo Castro, numa cena que conta com a coreografia dionisíaca de Alonso Barros, sob o desenho de luz coruscante de Vinícius Zampieri. Dá gosto de ver! Além disso, o pente fino de Möeller e Botelho varreu as lêndeas do politicamente correto e enxaguou as madeixas da geopolítica, fazendo jus à genealogia brasileira, que fez “Hoje Ainda É Dia De Rock” (de José Vicente, encenada em 1971) no mesmo leite de rosas do flower power.

Saiba mais sobre a peça!

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -