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‘A Procura De Uma Dignidade’ conjuga o verbo “esquecer” num engenho que não se esquece

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Aquele Roberto Carlos com gosto de vermute e conhaque de alcatrão que cavalga por toda a noite, por uma estrada colorida, não tem espaço em “A Procura De Uma Dignidade”, tampouco o que pede um café para dois ou aquele do cachorro que sorri latindo. Esse Rei, versão anos 1970, é cálido demais para o espetáculo que Ana Beatriz Nogueira extrai ao prosear com Clarice Lispector (1920-1977), zapeando seu repertório de contos.

O Roberto Carlos que se faz ouvir na encenação é o da década de 1960, que mandava tudo mais para o Inferno. É o Roberto lúdico, teen, da Jovem Guarda, que foi parar no cinema, em 1967, sob a direção de Roberto Farias (1932-2018), e ampliou sua popularidade.

É um Roberto que, ouvido hoje, gera um efeito proustiano e promove sensorialmente a busca de um tempo perdido. Não foi só a década de sessenta que se perdeu, mas seu zeitgeist, suas ideologias revolucionárias, seu 68 que nunca acabou na saudade (e no livro de Zuenir Ventura).     

Esses 1960 passaram por solavancos existencialistas na literatura brasileira, conforme Clarice a usou como calço para a edição e a publicação de suas expressões literárias, de 1961 (com “A Maçã No Escuro”) a 1969 (data de “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”). Nenhuma das ilusões jovem-guardistas cabe ali, mas seu frisson calça as recordações alquebradas da Sra. Xavier, protagonista de “A Procura De Uma Dignidade”, com precisão – e inquietação. 
  
Levado ao palco sob a direção de Gilberto Gawronski, o texto nasce do conto homônimo publicado em “Onde Estivestes De Noite” (1974). Na trama, a Sra. Xavier, uma mulher que pretendia assistir a uma palestra, vai parar, por engano, nos corredores subterrâneos do Estádio do Maracanã. Em busca de uma saída, ela mergulha numa jornada interna atrás de sua própria identidade, num Fla x Flu entre “o ser” e “o estar”.

Calçado no efeito especial vivo que é Ana Beatriz, o diretor de “A Procura De Uma Dignidade”, o polivalente Gilberto Gawronski, contou com Leonardo Netto para adaptar o lispectorante de Clarice alargando sua reflexão sobre a erosão das recordações. Esse tem sido um dos temas mais frutíferos da arte do século XXI.

Esquecer é verbo de ação e de reação no cinema (do “2046” de Wong Kar Wai ao “Como se Fosse A Primeira Vez”, com Adam Sandler), na literatura (nos romances de Karl Ove Knausgård), nas HQs (“Old Man Logan”). No teatro, com a Clarice de Ana Beatriz, o esquecimento é uma metástase. Não é uma saída oportuna para más lembranças, é mal oportunista. É sina.

No palco, a atriz, em seu estado de graça habitual, promove a arqueologia dos (des)saberes de uma pessoa que luta para se lembrar, sob o impacto da perda de si mesmo no maior estádio do país. O design de luz de Adriana Ortiz, somado à trilha sonora de Chico Beltrão, galvaniza o efeito vertiginoso que Gawronski parece buscar. 

No monólogo, quem assina o cenário é Beli Araújo. O figurino é de Antônio Medeiros. Pedro Colombo cuida das projeções, num videografismo que assinala resquícios do que se apaga, gradual e cruelmente. Só não se apaga o fogo de Ana Beatriz a incendiar o diálogo que as artes cênicas travam com a nossa perpétua necessidade de Clarice Lispector. 

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