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“O Motociclista No Globo Da Morte” traz aos palcos insulamento lírico da intolerância

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Antônio tem carregado um peso no coração, após uma situação trágica que refuta sua natureza outrora considerada pacífica. Ouviu, no passado, uma frase empregada habitualmente para ser um modulador de tragédias: “Deus é bom!”. Talvez, na situação em que se encontra, essa fala pudesse lhe servir de Mertiolate para as feridas da alma. Só que, para o personagem que Eduardo Moscovis garimpa na jazida de ouro (em forma de texto) que Leonardo Netto escreveu para ele. – com o título “O Motociclista No Globo Da Morte” -, esse Deus é aí é só retórica. 

Num silêncio que desalenta, sob uma luz que vai rareando no galope da fala, Antônio senta e solta o verbo. Seu falar é estruturado teatralmente, na encenação de Rodrigo Portella, a partir de um dispositivo narrativo de depoimento. Poderia ser um inquérito. Poderia ser uma reunião de AA. Poderia ser uma plenária. Se fosse cinema, o plano é ele; o contraplano… oculto, silencioso… é a gente. Como é teatro, tudo vira gira. 

O assunto de Antônio: uma confusão no Bar do Zeca, botequim onde a atendente Rita (da qual só ouvimos falar) vive a mercê de gaviões. Ronda a clientela um cachorro sonso, a quem o personagem de Moscovis batizou de Pingado, por conta da cor de sua pelugem, que lembra café com leite. 

O episódio conflituoso em questão, lá no Zeca, revivido como se fosse uma homilia, envolve um outro Antônio. Tinha um casca-grossa lá, também chamado Antônio, abusado, sexista, fiel à tese de que “é da natureza do humano ser desumano”, até com os animais. Ele vai detonar a Bomba-H da intolerância na história que ouvimos. 

Moscovis olha pra nós sem desviar o olhar, deixando Antônio se abrir. Fala manso. Pontua as rubricas como só os ourives da Gramática fazem, qual um Evanildo Bechara a medir orações coordenadas (pela angústia) ou subordinadas (ao desespero). Num dado momento, a gente suspeita de que Antônio esteja falando para si, a fim de evitar autoindulgências na relação com o perdão. O outro Antônio o levou a uma ação que ele prefere não rotular com adjetivos ligados ao merecimento. Não quer a nossa adesão ao que fez.  

A lembrança de um filme seminal, o Western “Os Imperdoáveis” (“Unforgiven”, 1992), de Clint Eastwood, vem à mente. Little Bill (Gene Hackman), mau como pica-pau, foi ruim com quem pôde, mas, ao se encontrar sob a mira de uma Winchester, diz: “Eu não mereço isso”. Will Munny do Missouri (Clint) ao gatilho, pensa: “Isso já não tem mais a ver com merecer”. 

Aliás, o bagulho entre os Antônios é um papo de tolerância. Do limite onde não se tolera mais e do quanto isso nos desumaniza. 

Quando presenteou o teatro brasileiro com “3 Maneiras de Tocar no Assunto” (2019), um dos textos mais viscerais do século XXI, Leonardo Netto já entrou em sintonia com esse sentimento tratado por Clint, e o fez nas raias da polarização política do Brasil. Foi a peça que melhor capturou o zeitgeist do ódio. E esse espírito zombeteiro segue aí, ao nosso redor.  

A operação que seu monólogo “O Motociclista No Globo Da Morte” processa agora, numa covalência entre os reatores nucleares de Moscovis e de Rodrigo Portella, é a afinação de uma linha dramática que o artista visual e cineasta luso Pedro Costa consolidou nos anos 2000, com os filmes “Cavalo Dinheiro” (2014) e “Juventude Em Marcha” (2006). Chama “insulamento lírico”.

Essa expressão entre aspas foi cunhada, a partir de análises da obra de Pedro Costa, pelo teórico de dramaturgia baiano José Carvalho, a fim de expressar a construção de ilhas de diálogo em os personagens se isolam em si, como se estivessem inconscientes das próprias profundezas pelas quais avançam. Alguns se perdem… alguns NOS perdem. 

Em “O Motociclista No Globo Da Morte”, sob o pavimento de um ator em maturidade plena de seus recursos, numa composição de impávido colosso, nada se perde. Talvez só a esperança no humano. Mas isso já se dava na Tebas do Rei Édipo… e o Teatro a salvou. Salva sempre. 

Nesse “insulamento lírico”, a iluminação de Ana Luzia de Simoni, de uma sabedoria coruscante, serve pra plateia como um istmo. Ali, nós nos ligamos a Antônio. A pertinência e a urgência da escrita de Leonardo Netto impedem que a gente se desligue. A dor que tá ali fica. 

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