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‘Compliance’ apresenta tragicomédia corporativa numa atuação inflamável

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Cronista cada vez mais arguto das incongruências da vida de quem sua as camisas em dinâmicas laborais, Fernando Ceylão insiste que não, mas o Rota Cult bate o pé ao dizer que “Pertinho de Você”, na voz de Elizângela (1954-2023) já integrou a trilha sonora de suas peças. Sempre há espaço para o cancioneiro romântico (breganejo) nos espetáculos escritos e encenados por esse multiartista tijucano. Paulo Sérgio (1944-1980) é o rouxinol de “Compliance”, sua (estonteante) peça da vez.

Compliance
Foto: Pamela Miranda | @pamelamirandafoto

Toca “Não Creio Em Mais Nada” na hora em que toda a plateia não tem mais unha para roer, tomada de tensão na encruzilhada (às avessas) em que Fabrício, estrela de lives e doutor em Empreendedorismo, fecha seus caminho. É um papel com força para repaginar carreiras, que a gente torcia pro Juliano Cazarré ter há dez anos, desde seu show de atuação em “Boi Neon”.

Fabrício fala como coach, é prospectivo, ama seu casal de filhos, detesta a banda Inimigos do Rei e sente nojo de quem se baba de ketchup. É direito dele. TOC é TOC.

Só que, em igual medida, chefe é chefe, e, nesse thriller de tom tragicômico do autor de “Como é Cruel Viver Assim” e “Meu nome é Reginaldson”, o patrão de Fabrício besunta molho nas esfihas que engole depois de bater um pratão como se não houvesse amanhã. Se você pensou em gula, ela é só um dos pecados delem além da luxúria, cobiça, preguiça…

O título “Compliance”, que Ceylão adotou, refere-se, ao primeiro sinal do teatro da nossa memória social, ao dispositivo de controle de dados num ambiente de grandes corporações. É o nome da intância para a qual se denuncia abuso.

Aliás, o termo é motivo de bênção para muita gente. Louva-o sobretudo quem se sente oprimido por uma chefia de paciência rarefeita ou por colegas de modos não civilizados. Há, entretanto, um abismo semiótico de comando por trás desse signo de segurança que virou boia nos novos tempos. É isso o que Fabrício aprende, na pele, a golpes de martelo que o endurecem. É o que ele nos ensina, numa estrutura de live que evoca o sucesso “A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento”, monólogo de Marco Nanini, montado em 2013, por Guel Arraes, a partir de texto de Georges Perec (1936-1982) .

Fabrício, figura alquebrada que Cazarré constrói sob a batuta de Ceylão, é um executivo de terno e colete bem ajustado. Tem o sorriso treinado e chega municiado com frases prontas. Sua atitude é quase violenta, amenizada por um sorriso ora carismático ora doentio. Cheio de falas motivacionais, ele tem atraído milhares de seguidores e todos os dias entra ao vivo no Instagram para motivar a audiência com lemas como: “Executa e vai. Mente milionária!”. 

“Compliance” é um amálgama de autoajuda e promessas de ascensão pessoal. A live que se vê na narrativa da peça segue uma linha de desespero diferente das que ele se habituou a fazer. Fabrício está fora de si.

Cenografado e musicado por Ceylão, “Compliance” revela, em cena, a tragédia que virou a vida de Fabrício do avesso, num calvário que lembra o de Joaquin Phoenix em “Coringa” (o Leão de Ouro de 2019). O anti-herói desse “O Rei da Comédia” teatral, em seu devir De Niro, conta como, depois de ter levado seis meses desempregado, foi contratado por uma empresa onde, de forma estranha, seu chefe, Bruno Batista, parecia tê-lo como protegido e preferido. Fabricio era o único tratado com deferência num ambiente hostil. 

Fabricio ganhava confiança, tapinhas nas costas, privilégio, porém as coisas começaram a ficar estranhas. Bruno ligava no meio da madrugada para desabafar, obrigava Fabrício e sua família – Laura e os dois filhos – a viajarem com ele. Fez de uma excursão a Búzios a jornada definitiva ao Inferno. O chefão, certamente, o tratava como um assistente pessoal sem horários livres. Do nada, tudo virou. O mesmo chefe passou a persegui-lo: minava sua imagem, fazia piadas públicas, arranhava sua dignidade com requinte. O bullying era silencioso, mas devastador. 

Na festa de uma amiga dos tempos de escola, Fabrício, finalmente, conecta os pontos: Bruno Batista também foi seu colega na mesma escola. Mas Fabrício não se lembrava dele, tampouco se lembrava de ter caçoado dele em seus tempos de colégio, quando era conhecido como Bruno Batata.

No fim, a revelação leva o que brota como comédia de erros a uma espiral de loucuras e violência. É um terreno que Ceylão sempre investiga. Seus pobres são massacrados por um tipo de má sorte que é apenas capitalismo disfarçado de azar. 

A diferença de textos teatrais “Compliance” é, surpreendentemente , sua maturidade. Nela, Ceylão faz política sem incorrer em panfletagem ou numa  “palestrinha”. Revolve as obsessões de sua obra e nos dá, com a ajuda de Cazarré, uma personagem que extrapola o palco. 

Seu Fabrício é o que eu, tu, você, nós, vós, eles somos capazes de nos tornar na estética do ódio que nos ceeca. O teatro é catarse para deslindar essa feiúra do contemporâneo.

Saiba mais sobre a peça!

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