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Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria: Uma narrativa de contornos feministas

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Se a pressão prévia para aprovação de um título é descabida por qualquer que seja o sintoma (admiração pelo cineasta, por exemplo), ainda mais absurda é o oposto dessa prática – porquê alguém deveria ‘desgostar’ antecipadamente de um filme? Apesar de tal questão, o nosso tempo guarda questões infindáveis em relação às obras, como a antipatia que a cinefilia nutre por algumas especificidades; a A24 seria um deles. Mesmo com tantos sucessos de público e crítica no portfólio, a produtora independente criou uma espécie de selo de aprovação em temáticas e encaminhamento narrativo que as más línguas desaprovam, geralmente porque contam algo pouco sutil. Com essas características, uma produção curiosa impressiona por carregar esse dado de desaprovação prévia, tanto quanto responder com novidade ao circuito: Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria

Dirigido pela também atriz Mary Bronstein, o filme parte de uma realidade metaforizada (às vezes até explicitamente) para contar uma história aguda a respeito da perda de controle absoluta que podemos ter em relação ao nosso entorno, que progressivamente se desmorona. Quando menos podemos esperar, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria nos envolveu de maneira indelével, e isso vale inclusive aos detratores. Porque é complexo sair da sessão indiferente ao que assistimos, uma narrativa de contornos feministas no qual é exigido muito domínio de um exagero pouco visto nas telas hoje, por seu viés tóxico no retrato que faz às relações humanas. 

No caso, Linda. Vivida por Rose Byrne em um daqueles momentos de epifania raros da qual um ator pode alcançar na vida, essa é a história de uma mulher que literalmente vê seu mundo ruir. Mas se a sugestão da queda do teto em sua cabeça de maneira literal poderia sugerir algo menos imaginativo por parte do roteiro, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria mostra ao espectador que esse não é o estopim do que está em curso. Esse sim é o momento no qual flagramos a jornada de uma mulher esgotada, mas os elementos explicitamente já estavam no lugar para promover o que sugere uma catarse que precisa acontecer. Não no roteiro ou no campo das imagens, mas no lugar onde essa personagem precisa reconhecer o caos que se arvora em sua direção – e que lhe é constantemente negado; sim, a ideia de estagnação é tolhida socialmente a cada nova sequência. 

De muitas formas, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria está falando sobre performance social, sobre aceitação da própria falência emocional, e sobre feridas invisíveis ao olho nu. Essa performatividade, quando é exigida ao gênero feminino, ainda trafega em outras áreas, como a necessidade de sucesso na maternidade (de maneira irrestrita), na eterna guerra dos sexos onde o masculino já agrega estímulo social vantajoso, que podem gradativamente tornar a existência em horror. Parece excessivo, mas todas essas questões estão em jogo no filme, sem mostrar a pressão exercida pela metáfora inicial, que sim, talvez seja exagerada, mas que é igualmente bem sucedida para exemplificar suas equações. A transformação é a chave para a entrada do abstrato, rasgando uma possível normatividade narrativa que nunca foi pretendida. 

A partir da manutenção dos signos que apresenta, no entanto, o filme abre mão dessa postura mais coloquial, para refletir uma sensação de terror intrínseco não somente àquela mulher, mas a todas as mulheres em situações afins. Apesar das provocações, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria reluta em assumir-se como um exemplar do gênero, talvez entendendo que precisava conseguir comunicação com a norma. O resultado é um exercício de estudo de personagem dos mais ricos recentemente, que flerta com os dogmas do horror em imagens e na pura sensação que o filme quer carregar, e isso basta para defini-lo como tal; assim como sua sutileza tende a desagradar aos detratores desse cinema de significados, códigos imagéticos e mal estar. Por trás das belas transições que Bronstein propõe, existe uma tentativa regular de transcrever o complexo universo feminino. 

Ao lado da autora, caminha junto à criação o rosto do projeto. Byrne se apossa do material com uma fúria não vista antes, e nos transporta para o cerne da questão. Ainda que Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria tenha autonomia de discurso e não limite sua direção, reside na performance da atriz uma co-autoria que vai além da intelectualidade do gesto. Ela é o molde sob o qual a narrativa sustenta sua voz, enxergando nela mulheres que não estão simplesmente à beira de um ataque de nervos, e sim clamando por múltiplos pedidos de ajuda. Muito acima das questões maternas que não encontram saídas práticas e emocionais, o filme se cerca delas para observar a desestabilização provocada pelo excesso de demandas que cabem ao corpo feminino acolher. E quando o colapso tão bem defendido por Byrne vem à tona, é impossível resistir ao apelo de enxergar a barreira para a paz de espírito; a visão que retorna, quando finalmente existe outro tipo de libertação: o de entender os limites, e abraçá-los. 

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