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“OS INICIADOS”: O RETRATO ÁRIDO DA CULTURA AFRICANA

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Após explorar de forma estilizada a classe abastada de Joanesburgo em Eles Só Usam Black-Tie (2015), o diretor John Trengove volta a retratar um aspecto da cultura africana, mas, desta vez, de forma seca e impiedosa. Os Iniciados (Inxeba) acompanha Xolani (Nakhane Touré), também conhecido como X, um solitário funcionário de uma fábrica em Queenstown, na África do Sul, que, uma vez por ano, dirige-se para as montanhas para auxiliar o mais importante ritual da cultura Xhosa – uma espécie de iniciação masculina na qual os jovens (os iniciados) são circuncidados e passam duas semanas sob a tutela de seus cuidadores. Xolani fica responsável por Kwanda, garoto da cidade grande, filho de uma família rica, que levanta suspeitas a respeito de sua sexualidade. No entanto, a ordem hierárquica natural do ritual é abalada quando o jovem descobre o segredo mais bem guardado de X: o relacionamento secreto com Vija (Bongile Mantsai), um cuidador.

Assim, sendo uma história de opressão, segredos, rebeldia, ressentimento e tradições, o principal ingrediente é a tensão, que já é trabalhada desde o começo do filme, apresentando os primeiros vinte minutos mais aflitivos da História – principalmente para o espectador masculino. Logo em seguida, percebe-se que o que deveria ser uma coisa corriqueira como a sexualidade de uma pessoa é uma arma com o poder de destruir a vida de uma pessoa, principalmente um homem que vive inserido em uma cultura onde, tradicionalmente, há um longo e doloroso ritual no qual são impostos a todo momento os padrões e princípios de masculinidade que devem ser seguidos e exibidos. Mesmo assim, Kwanda – que não faz muita questão de esconder sua homossexualidade e deixa claro para todos que não quer estar ali – logo percebe que há algo além de amizade entre Xolani e Vija, e passa a utilizar indiretas e perguntas aparentemente inocentes para afrontar seu cuidador.

Já a relação de os dois homens possui uma dinâmica quase unilateral, que, rapidamente, mostra-se tão angustiante para X quanto é para o espectador. Ambos mantêm suas fachadas da forma como melhor lhe convém – Vija é casado e tem filhos, enquanto Xolani prefere se isolar, longe de pessoas conhecidas, onde é possível não estabelecer qualquer tipo de laço afetivo. O relacionamento dos dois sempre foi assim, eles se encontram durante o período do ritual todos os anos, transam escondidos em lugares ermos e só. Tanto um quanto o outro estavam satisfeitos com isso até a chegada de Kwanda, que, como uma forma de mostrar o seu descontentamento com o ritual passa a falar algumas verdades sobre o caso dos dois homens. Já que Xolani mostra-se apaixonado por Vija – mesmo sabendo que uma relação real é impossível -, que mesmo demonstrando certo carinho em raríssimas ocasiões, é mais relutante e seco em suas ações, dando a entender que X não é o único homem com quem ele se relaciona – mesmo que Xolani não perceba isso.

Logo, a situação se torna mais tensa, no momento em que Kwanda passa a desafiar não somente X, mas Vija também, sem perceber o quão perigoso isso pode ser, uma vez que Xolani é de personalidade mais paciente e aparência frágil, porém, o outro é forte, impaciente e arrogante em relação a sua masculinidade; ele sabe que o adolescente é um homossexual que não nega este fato e, por isso mesmo, não aceita ser desafiado por ele. Contudo, as coisas saem de controle quando Kwanda tem a confirmação de suas suspeitas ao flagrar os dois homens nus, dormindo juntos no meio da florestas, próximos a uma cachoeira. Vija fica furioso com o jovem – o medo de ser desmascarado se transforma em ódio ardente – e promete matar o rapaz, tudo isso em meio aos rituais Xhosa da comunidade, onde ninguém pode saber o que está acontecendo entre o trio.

Assim, Os Iniciados tem seus trunfos no roteiro conciso – o filme tem 1h28min – e bem amarrado, que mostra a realidade de muitos homens africanos sem eufemismos ou condescendência; na direção de Trengove, que valoriza o gestual e os momentos de silêncio, mantendo sua lente sempre próxima de seus objetos de estudo, e conduz a câmera e o olhar do espectador de maneira tão natural que, em alguns momentos, beira a linguagem documental; na fotografia amarelada, quente e árida que promove uma imersão do público naquele universo, quase como uma personagem; e no elenco, o qual entrega interpretações realistas e cativantes – com destaque para Niza Jay, que dá vida a Kwanda. Tudo isso, somado a uma trilha minimalista e extremamente pontual, austera e certeira, que ajuda a aumentar cada vez mais a tensão justamente por ser crua, dando um aspecto mais orgânico aos acontecimentos.

Outro ponto de destaque do longa é a forma como os encontros de Xolani e Vija são registrados na tela e suas transformações ao longo do enredo. No começo, são ferozes, brutos, quase animalescos. Conforme a história se desenrola, surge mais afeição, aquela fúria de antes é arrefecida à medida que as personagens vão tentando tirar, pelo menos um para o outro, as máscaras que usam desde de a juventude – quando começaram seu relacionamento – e que já estão quase amalgamadas em seus rostos, pois, por mais que estejam muitos relutantes em assumir para si mesmos os seus verdadeiros sentimentos e quererem deixar a situação como está, ambos sabem que a infelicidade que passaram a não ignorar mais só tende a crescer e, por consequência, destruir qualquer tipo de relação entre os dois, seja ela amorosa ou apenas amizade.

Além disso, outras questões acerca da cultura sul-africana também são abordados, como a estrutura social da região – por exemplo, a convivência de Kwanda com os outros iniciados é dificultada pelo fato de ele ser um garoto rico de Joanesburgo, que, na visão dos outros meninos, “pensa que é branco”. Mas, sem dúvidas, o pano de funda da história é a oposição entre tradições e modernidade. O ritual Xhosa que tem como objetivo transformar os meninos em “homens de verdade” é levado muito a sério pelos mais velhos e pelos rapazes de classes sociais mais humildes, no entanto, é visto como uma “porcaria” por Kwanda – principalmente, levando em conta sua sexualidade. Já Xolani encontra-se em uma situação complicada, uma vez que acha importante manter as raízes de sua cultura, mesmo que esta o oprima e não permita que ele seja o que é de fato – além do fato de a montanha onde os rituais são realizados ser o único local onde ele pode dar vazão aos seus sentimentos e desejos, ainda que por pouco tempo e em segredo.

Portanto, “Os Iniciados” é um filme que, acima de tudo, mostra como o peso do patriarcado – em especial, um patriarcado extremista – fere todos a quem alcança, literal e metaforicamente, ainda mais quando este regime está no alicerce de tradições culturais milenares, obrigando os membros desta sociedade a enterrar suas personalidades, desejos e sentimentos naquelas montanhas. Juntando todos estes elementos, não é surpresa que o longa tenha chamado a atenção em premiações, como na Berlinale, onde foi indicado ao Teddy Award, além de ser o escolhido da África do Sul ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Os Iniciados” é um daqueles filmes que dá um tapa no rosto do público ao mostrar um realidade que muitos optam em não enxergar, deixando uma nota amarga na boca do espectador, ou seja, é um filme necessário e que deve ser visto e, principalmente, discutido.

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