- Publicidade -

Ninfomaníaca: volume 1 e Ninfomaníaca: volume 2

Publicado em:

ninfomaniaca-poster-2-close-upÉ no mínimo ingênuo dizer que Nymphomaniac (2013) compõe, com Antichrist (2009) e Melancholia (2011), a última parte de uma trilogia da depressão de Lars Von Trier. Quem pensa que o filme é sobre sexo, se engana. É, dentre muitas outras coisas, sobre a polimorfa sexualidade humana. E se a censura, em pleno século XXI, o ronda em alguns países, não é por causa dos pênis e vaginas que, de fato, aparecem com certa naturalidade, e, sim, devido ao grande tema que o abrange: a hipocrisia.

Com clichês psicanalíticos, Nymphomaniac está longe de ser um inventário de perversões sexuais. Pode ser uma tragicomédia sobre (ou contra) a normatização do desejo pela atual composição da sociedade ocidental: sexista, moralista, que ainda não sabe lidar com o (des)conhecimento da sexualidade (sobretudo da feminina), o abismo que impera entre os seres humanos. Portanto, não interpretem os parênteses apenas como uma alusão gráfica à vulva. Eles juntos, e assim colocados, podem significar até mais uma fenda, o buraco da fechadura (ou abertura), coisa abissal e obscura, inerente ao ser humano. A partir da anatomia feminina, outros aspectos da sexualidade e da sociedade são evocados para compor, arrisco dizer, o filme mais maduro e consciente de Trier que, com um pensamento estético e filosófico cínico e cético, observa a humanidade com esta dupla e inseparável perspectiva tragicômica.

O filme foi dividido em duas partes por questões comerciais, assim como o seu título marquetinesco para atrair público, mas, na verdade, constitui uma coisa só: a narrativa de Joe (Stacy Martin/ Charlotte Gainsbourg) sobre a sua trajetória contada a Seligman (Stellan Skarsgard), um homem solitário, que se diz virgem e a recolhe, machucada, da rua. Ele ouve suas experiências, assim também nós espectadores, e, mesmo com toda a composição imagética, talvez seja a força de alguns diálogos o fator mais impactante, como em Persona, de Ingmar Bergman.

Pois aqui temos um duelo entre uma mulher que viveu a vida de forma intensa e um homem, praticamente eremita, que a acolhe e com ela reflete sobre a sua história mostrada em flashbacks, ao mesmo tempo em que procura compreendê-la intelectualmente. De um lado, uma mulher que, desde o início, assume ser ninfomaníaca e, de outro, um homem que vivencia a ausência de qualquer manifestação de sexualidade – o que também poderia ser considerada a mais estranha de todas as perversões sexuais. De fato, não se trata de um duelo (a não ser pelo final surpreendente), mas de um encontro entre dois seres que lidam com suas solidões, já que não se enquadram em qualquer papel previsto pela sociedade burguesa. Joe e Seligman são como yin e yang, pulsão e sublimação, vício e recalque, ambos excessivamente polarizados.

Começa por ser posto na mesa o solitário jogo de paciência para questionar se obscena é a libertinagem ou a hipocrisia. Ao longo de oito capítulos, é construída a crônica na primeira pessoa da vida (sexual) da protagonista que, em meio a sua narrativa, analisa uma sociedade covarde: “As qualidades humanas podem ser expressas em uma palavra: hipocrisia”, diz ela. Para além da auto-liberação sexual, certo e errado, o uso (ou a proibição) de vocábulos, o desejo e sua efetiva manifestação (ou repressão, muitas vezes) são também temas conversados. Mas Joe parece muito menos preocupada em analisar as comunidades humanas nas quais vivemos do que em saber lidar com a sua própria condição. E, por isso, o momento em que Joe encontra a sua árvore é tão revelador: Joe avista, do alto de um penhasco, uma árvore deformada, desfolhada como as árvores no inverno, quando se pode ver com clareza as suas almas, torta e pendente, propensa a cair – de acordo com um determinado padrão social, e por isso inaceitável.

Nymphomaniac é tudo isso ou apenas um épico autorreflexivo de uma mulher desavergonhada. E ainda bem: já que Joe não tem vergonha de assumir o que é, quem é, o que faz muita diferença numa sociedade falso-moralista como a nossa. Dois momentos do filme são decisivos para esta percepção: o seu discurso final ao sair da terapia em grupo para viciados em sexo e um trecho do seu diálogo com Seligman sobre o que se considera ser “politicamente correto”.

Numa teia de referências artísticas, Trier também brinca com a sua própria filmografia, quando Marcel, sozinho em casa, desce do berço e sobe na sacada para ver a neve. A cena de Antichrist é glosada e a trilha sonora se repete. She e Joe perdem o filho. De formas diferentes, mas por causas similares.

Muitos apontam Nymphomaniac como o filme que transforma o gênero pornográfico. Quando muito, ele esbarra na esfera da sexualidade, porque, como nunca se viu antes, Lars von Trier cria, e com algum humor, uma fábula inteligente e absolutamente humana. Através dela, parece que voltamos a discutir sobre o abismo que se abre entre a natureza e a sociedade humanas. Seria já ousadia minha dizer que o que lá se tem é a vida e, portanto, algumas raras cenas de sexo explícito não são senão uma metáfora ao lidar com o cinema como um organismo vivo.

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
3.870 Seguidores
Seguir
- Publicidade -