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Longa biográfico musical Verão mostra um recorte do momento em que o cenário underground começou a florescer

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Ao longo da História da cultura ocidental, acostumou-se a associar o rock ‘n’ roll à rebeldia, ao hedonismo, aos excessos e esta concepção se mantém vívida na memória e no subconsciente do público hoje em dia graças às cinebiografias de estrelas do gênero, as quais fazem questão de reafirmar esta ideia – às vezes, até de força exagerada. No entanto, este conceito é uma visão que os ocidentais têm de seus astros do rock, o que pode fazer com que os espectadores se surpreendam com a trama do longa biográfico musical Verão, o qual mostra um recorte do momento em que o cenário underground começou a florescer em Leningrado, na Rússia, em 1981, ao contar a história de Viktor Tsoi (Teo Yoo), um pioneiro do rock russo, que, enquanto tentava alcançar a fama com sua banda, Kino, envolveu-se em um triângulo amoroso com Mike Naumenko (Roman Bilyk), seu mentor musical, e sua esposa, Natasha (Irina Starshenbaum).

Este enredo, sob a ótica ocidental, poderia ser resumido ao tradicional “Sexo, Drogas e Rock ‘n’ Roll”, mas, esta definição está longe do que é visto em tela e isso fica claro já nos primeiros minutos quando Zoopark, a banda de Mike – um músico consolidado na carreira -, toca para uma plateia cheia, porém silenciosa e vestindo roupas tão discretas quanto seu comportamento. Todas as personagens vivem sob a mão de ferro do regime comunista soviético – um verdadeiro comunismo -, logo, aquele viés transgressor e subversivo do rock é anulado, em todos os sentidos. O controle estatal se estendia da conduta do público dos shows às letras das músicas, que, antes de qualquer coisa, tinham que passar pela censura, a qual pregava que as composições tinham que ter mensagens edificantes que não denegrissem a imagem dos cidadãos russos.

E esta é a primeira barreira que os jovens músicos encontram. Embora Mike tenha como principais influências ícones como Lou Reed e David Bowie, valorizando, assim, o aspecto mais poético do rock, Viktor e seus companheiros admiram outras lendas mais rebeldes tais quais Talking Heads, Velvet Underground, Blondie, Iggy Pop e Sex Pistols. Isso, por si só, já seria um problema, mas, além disso, ainda havia a questão ideológica – afinal, aqueles garotos idolatravam e cantavam as músicas dos “inimigos” da pátria russa; este ponto fica mais evidente em uma sequência musical, com estética de videoclipe, na qual os jovens cantam “Psycho Killer” durante uma briga com guardas e passageiros dentro do transporte público.

Aliás, este é só um exemplo dos criativos efeitos inseridos na montagem – nestes momentos musicais em que as pessoas aparecem realizando as atitudes impossíveis que desejam tomar, logo em seguida, surge uma personagem, chamada de “Cético”, interpretado por Aleksandr Kuznetsov, (que também poderia ser encarada como o Herói Lírico das canções de Viktor e faz as vezes de locutor), empunhando uma cartela na qual se lê “Isso Nunca Aconteceu”. Outra ideia interessante são os inserts em cores nas cenas de realização catárticas sonhadas ou sentidas enquanto as letras das músicas são escritas progressivamente nas laterais da tela, contrastando com a elegante cinematografia em Preto & Branco, a qual pode ser vista tanto como uma metáfora a rigidez do governo russo daquele período quanto uma representação de como aquele regime já estava velho em comparação com os anseios dos jovens da época.

E esta oposição entre o “velho” e o “novo” também pode ser aplicada ao triângulo amoroso formado por Viktor, Mike e Natasha. Ela é uma mulher pacífica e majoritariamente passiva, que, por exemplo, não se importa com o fato de o marido não se envolver muito na criação do filho, e a convivência com o pupilo de Mike desperta nela a vontade de experimentar algo diferente, fresco, novo. Porém, o espectador que espera que surja algum grande conflito disso pode se decepcionar um pouco, uma vez que todas as personagens centrais demonstram muita condescendência diante de um possível atrito, o que não chega a ser um defeito ou atrapanhar o andamento da trama, uma vez que a intenção é retratar de uma forma lírica o zeitgeist – ou o descontentamento com este -, e a história de Viktor e sua banda é apenas um instrumento para isso, por tanto, fugir um pouco das estruturas clássicas de uma cinebiografia – que, geralmente, seguem a receita Ascensão, Queda e Redenção – é uma escolha aceitável.

Assim, o longa acompanha o cotidiano, as atividades, daquele grupo de artistas, que passam a maior parte do filme conversando – ou discutindo – sobre as melhores formas de se expressar por meio da música – como devem ser as letras, quais devem ser os intrumentos, como a gravação deve soar, como seria o show ideal; isso, mesmo de forma sutil, já é uma forma de se posicionar em relação ao regime russo e, com certeza, foi a intenção do diretor Kirill Serebrennikov, figura polêmica na Rússia que foi impedido de ir à estreia do longa no Festival de Cannes 2018 por estar em uma controversa prisão domiciliar em seu país.

Desta forma, “Verão” é um surpreendentemente bonito, criativo, alegórico e ironicamente engraçado retrato de um momento do passado, que reflete sobre a rebeldia como uma forma de resistência ao autoritarismo e utiliza para narrar sua trama um dos maiores símbolos da subversão da História: o rock, que, mesmo tendo que sofrer adaptações e se disfarçar para passar pelas barreiras de um sistema falido, obcecado pelo passado e oposto à liberdade de expressão, conseguiu dialogar com toda uma geração que desejava a morte daquele regime e formar ícones em lugares e situações nas quais as pessoas, apesar de admirarem a transgressão, a evitavam em prol da harmonia e da própria segurança, o que faz deste filme uma cinebiografia, um musical, uma crítica, mas, acima de tudo, uma declaração de amor ao Rock ‘n’ Roll.

 

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