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O SEGREDO DE DAVI: UM SERIAL KILLER VOYEUR NA ERA DA PÓS-VERDADE

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Se a principal reclamação acerca do cinema nacional era a falta de diversidade de gêneros, nos últimos tempos – e, especialmente, em 2018 – várias produções vêm quebrando o monopólio das comédias populares – alguns exemplos são o horror sobrenatural As Boas Maneiras e a saga de super herói O Doutrinador. E o mais recente exemplar desta nova leva é o suspense O Segredo de Davi, escrito e dirigido por Diego Freitas. O longa acompanha a personagem-título – vivido por Nicolas Prattes – um jovem estudante de Cinema com tendências voyeuristas e psicóticas – estas últimas ainda latentes. O rapaz tem o hábito de filmar desconhecidos incognitamente – segundo ele, as pessoas se mostram de verdade quando estão distraídas. Ao se aproximar de Jônatas (André Hendges), um mestrando que foi um de seus observados, Davi experimenta a libertação por meio da morte, o que o leva a iniciar uma série de assassinatos, os quais ele filma e posta na internet, o que ameaça cada vez mais o seu segredo.

Imediatamente, o primeiro aspecto que fica claro é a intenção do diretor que contar esta história a partir do ponto de vista de Davi. Assim, Freitas coloca sua câmera quase perturbadoramente próxima do rosto do assassino, levando o espectador para dentro da mente do protagonista. E esta escolha só se mostra eficaz por estar aliada à interpretação de Prattes – em seu primeiro papel no cinema. Davi é uma personagem complexa; por fora, é um jovem tímido, de fala melíflua, com um círculo de amizades restrito e um nível de inabilidade social típico de um nerd, porém, esta carapaça esconde uma personalidade sombria que, sob pressão, é exteriorizada por arroubos violentos. E, a partir do momento em que ele faz sua primeira vítima, tem de aprender a equilibrar estes dois lados para que seus atos como serial killer permaneçam ocultos – afinal, como ele mesmo diz no começo do filme, a principal regra do observador é permanecer invisível.

E o ator transita bem entre estes matizes da personagem – o que não é fácil, uma vez que as chances de Davi cair na caricatura do sociopata apático e inexpressivo eram grandes se a extrema falta de empatia dele for levada em consideração. Contudo, em vez de seguir por este caminho, Prattes opta por mostrar a alternância entre as duas faces do assassino justamente por meio de calculadas mudanças faciais e posturais – em alguns momentos, talvez, o limite seja ultrapassado um pouco, ecoando muito o Norman Bates de Anthony Perkins na icônica cena final de “Psicose”, mas isso não chega a tirar a credibilidade ou a identidade da interpretação.

E o ator também consegue mostrar uma atuação precisa nas facetas mais inesperadas de Davi – como nas cenas em que o espectador questiona se aquela tensão homoerótica entre Davi e Jônatas é real ou fruto da mente do sociopata. E esta é apenas uma das indagações que surgem no desenrolar da trama, pois, uma vez que o história é quase narrada em primeira pessoa, o público sabe tanto quanto o protagonista o que está por trás de toda aquela ânsia assassina. Talvez, os pontos frágeis da atuação de Prattes seja o sotaque de Davi, inconsistente em algumas cenas e a dicção, a qual falha em um ou dois momentos – apesar de já ter melhorado muito desde o primeiro trabalho do ator na televisão.

Ainda no quesito interpretação, a de Prattes é a que mais se destaca por ter mais material e tempo de tela. As coadjuvantes, como os amigos de Davi e Thomaz (Tutty Mendes) – que antagoniza com o protagonista – não possuem um desenvolvimento real; talvez, a única que fuja a este padrão seja Maria (Neusa Maria Faro), a primeira vítima do assassino, a qual, após sua morte, passa a “viver” na casa do rapaz, servindo como uma espécie de “consciência” – embora meio torta – e representando a imortalidade da alma. Além disso, o elenco ainda conta com Cris Vianna, que interpreta a investigadora Luiza, porém este se trata de um caso claro de talento desperdiçado, pois, uma vez que o roteiro prioriza a subjetividade em detrimento da objetividade, as aparições da personagem fica restrita a quatro cenas – apesar de a última dar mais espaço para a atriz trabalhar.

Aliás, ainda que tenha uma boa história e um desenvolvimento instigante, o roteiro possui algumas falhas que se sobressaem. Por exemplo, o excesso de exposição no que diz respeito à personalidade das personagens – como quando é dito que “Davi não é Davi sem câmera”, ou quando o protagonista conhece Jônatas devidamente e uma amiga do rapaz comenta que as bochechas dele “estão mais vermelhas do que de costume”; são falas desnecessárias uma vez que o que é dito pode ser visto na tela. No entanto, o que mais pode dispersar a atenção do público é o tom um tanto quanto travado, e quase teatral, de alguns diálogos, o que tira a naturalidade deles – uma linguagem mais coloquial fez falta e isso chega a afetar algumas interpretações, como a de André Hendges, que devida à estrutura de algumas frases, por vezes, soa artificial.

Já nos aspectos técnicos, o longa é impecável. A cinematografia sombria de Kauê Zilli serve à história, a direção de arte é extremamente bem pensada e a trilha sonora, composta por sons sintéticos e inquietantes – quase como um zunido na cabeça de Davi que invade os ouvidos do espectador, é quase uma personagem à parte. E as cenas de violência gráfica – mais especificamente no segundo assassinato cometido por Davi – são muito bem dirigidas e montadas, além de contar com bons efeitos visuais e práticos – o que, felizmente, vem se tornando uma constante nas produções nacionais, as quais sempre sofreram muito com efeitos digitais precários.

O Segredo de Davi – após um bom e longo trabalho de divulgação – é um ótimo exemplar de filme de gênero no cinema nacional, contabilizando muito mais qualidades do que falhas. É verdade que o longa não entrega exatamente o que promete na sinopse, mas isso não é um defeito, uma vez que vai além do esperado. Apesar de o longa dizer que “o porquê das coisas é bobagem”, uma explicação é apresentada nas cenas finais, contudo, esta explicação está sujeita a interpretações, pois, ao optar por levar o espectador para dentro da mente doentia de seu protagonista, flertando, de forma ora objetiva ou ora simbólica, com o sobrenatural e o horror, em vez de seguir o caminho tradicional de investigação policial, característica deste tipo de suspense, a produção conta sua história de forma muito mais interessante ao adentrar os campos da Filosofia, do fanatismo religioso, do machismo, dos traumas de infância, dos filmes snuff, do voyeurismo intrínseco à vida nas redes sociais e da pós- verdade, que é o maior trunfo que o suspense atual tem.

 

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