Lembro Mais dos Corvos: documentário aborda com simplicidade a transsexualidade

Em uma noite de insônia, a atriz Julia Katherine – a primeira realizadora transsexual a conseguir lançar uma produção comercialmente no Brasil, com o curta “Tea For Two” – conta e reflete sobre sua história de vida, o que invariavelmente, percorre caminhos que envolvem resistência e a batalha da autoaceitação. Este é o tema central do documentário Lembro Mais dos Corvos, dirigido por Gustavo Vinagre, que transforma um diálogo em monólogo, enquanto sua personagem discorre não apenas acerca de suas experiências pessoais, mas também a respeito das experiências de pessoas trans.

Mas, antes de entrar neste terreno, o longa, primeiro, explica quem é sua protagonista – um trabalho que, bem feito, cria uma identidade para ela, facilitando uma relação com o público. Assim, o espectador descobre quem é essa mulher de 40 anos que alega ter iniciado sua carreira tardiamente e escolheu seu nome por causa de sua admiração pela atriz Katherine Hepburn, uma inspiração tanto como pessoa quanto como profissional, pois – de acordo como uma entrevista que Julia leu certa vez, a diva nunca cursou uma escola de Artes Dramáticas e, mesmo assim, é a atriz mais premiada do Oscar, com quatro estatuetas.

Isso já revela sua adoração pelo cinema, o qual sempre serviu como uma válvula de escape para as violências emocionais sofridas desde a infância. Com isso, o público assiste Julia se desnudar diante da câmera, mostrando as sequelas deixadas pela opressão sob a qual viveu – e vive ainda -, como a ansiedade, o apego aos longos cabelos escuros – demonstrado pelo quase constante toque nos fios -, os cigarros acesos em sequência, o embaraço diante de algumas histórias e – talvez este seja o ponto mais intrigante – seu ponto de vista em relação a acontecimentos pesados de seu passado.

Por exemplo, aos oito anos de idade, Julia foi vítima de um pedófilo, contudo, ela afirma que, apesar de ter consciência da gravidade da situação, não se sente ou se vê como uma vítima, uma vez que o homem acabou por ser importante para a formação de alguns parâmetros em sua vida, principalmente no campo sexual. E este tipo de experiência abusiva, que faz parte da vida de muitas pessoas, tem seus alvos mais vulneráveis na comunidade LGBTQ+, mostrando, mais uma vez a similaridade da história de Julia com as de tantas outros membros. E esta é apenas um dos relatos.

Além disso, a direção de Vinagre dá ao longa uma pegada crua, simples e direta como a de uma conversa cara-a-cara, a qual ajuda a elevar o impacto do soco na boca do estômago que este filme é. Aliás, é mais apropriado chamá-lo mais de “filme” ou qualquer sinônimo do que de documentário, uma vez que a própria Julia já declarou que algumas das histórias contadas por ela não são pessoais, mas se encaixam na vivência de muitas outras pessoas trans mundo afora. E o interessante é que não se sabe quais histórias são de Julia e quais não são, pois alerta o público de que todas aquelas experiências que chocam por, em teoria, terem acontecido a uma única pessoa, são sofridas por muitas outras a todo instante.

Assim, Lembro Mais dos Corvos passa por tópicos como a evasão escolar devido as agressões praticadas por alunos e professores, o desconforto com o próprio corpo, que fez com que Julia pensasse em aplicação e silicone industrial – ela desistiu quando viu como o processo era realizado -, a situação de rua – que a atriz viveu no Japão -, o AVC que sofreu em decorrência da injeção de hormônios; a cada nova revelação, o espectador é tragado mais e mais para a vida de Julia, impossibilitado de agir com indiferença, em especial, diante da sagacidade e do nível de cultura que ela conseguiu adquirir mesmo com tudo pelo que passou. E, por fim, o longa lembra aquela máxima, a qual diz que, na vida, é preciso aprender a perdoar, mas não esquecer – e as cicatrizes deixadas pelos corvos do passado são um constante lembrete.