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O cinema por Quentin Tarantino

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Por João Victor Ferreira

9 filmes que marcaram a carreira do diretor.

Quentin Tarantino é hoje, sem sombra de dúvidas, um dos diretores de cinema mais conhecidos pelo grande público. Parte dessa notoriedade vem da admiração, a partir da contemplação estética de suas obras, pelos seus admiradores. Todavia, muito polêmico e com opiniões fortes, seus desafiadores criticam a sua estética da violência e suas abordagens desmedidas. Ame ou odeie, não há como se enganar: Tarantino hoje é uma marca e sua assinatura é uma das mais famosas nos filmes americanos contemporâneos.

Por mais que tivesse nascido em Knoxville, no Tennessee, Quentin Jerome Tarantino foi cedo para o estado da Califórnia, onde viveu maior parte da sua vida, principalmente ao sul da cidade de Los Angeles. Em meio ao mundo que respirava glamour, nos anos 1960, Tarantino cresce. Quando completa 21 anos se torna balconista de uma locadora de filmes, na região onde morava. Fato este que é importante na carreira do diretor, já que foi a partir disso e, somado com o seu amor por filmes, que ele conseguiu em pouquíssimo tempo reunir um vastíssimo repertório fílmico, auxiliando-o no seu senso estético, quando dirigiu.

É válido lembrar que Tarantino é um diretor de referências, de tendências: por conhecer tão bem o cinema e suas fontes – alguns diretores famosos aparecem na sua lista de preferidos, como Sergio Leone, Jean Luc Godard e Alfred Hitchcock –, ele sabe perfeitamente que referência usar, como e onde a colocar. Esse excesso de referências dá certa propriedade para o diretor que sabe muito bem utilizá-las, nunca parecendo uma cópia, mas sempre uma ressignificação. Tarantino nunca se formou em cinema e talvez o cinema é que tenha o formado. Foi escrevendo roteiros e os vendendo na terra das oportunidades, em Hollywood, que ele conseguiu orçamento para começar a produzir seus primeiros longas.

Mesmo com diversas semelhanças estéticas e narrativas, que podem ser percebidas em uma análise mais ampla da sua filmografia, uma das marcas da direção de Tarantino sempre foi a transgressão. Transgressão essa que é feita com muita propriedade, uma vez que o diretor domina muito bem os recursos técnicos que a função requer. Desse modo, cada mudança de tom, cada quebra de expectativa, cada inversão de uma ferramenta clássica nunca soa como desleixo e sim sátira. As semelhanças estão presentes e, depois de analisarmos minimamente seus – ate então – 9 filmes, ficará mais fácil percebê-las. Seja o uso da violência como recurso narrativo e catártico, a verborragia nos diálogos longos ou até a presença recorrente do final feliz, nenhuma semelhança fica mais clara, na filmografia do diretor, do que seu amor pelo cinema e como todos os seus filmes são filmes sobre essa arte.

CÃES DE ALUGUEL (Reservoir Dogs, 1992) – Seis criminosos se preparam para o tão planejado roubo de diamantes. Tudo sai errado e um deles é morto no meio do assalto. Todos são obrigados a recuar para a base, ainda munidos da paranoia da possível traição de um dos membros.

O primeiro filme de Quentin Tarantino já começa com um “pé na porta”, abordando um dos gêneros mais clássicos do cinema hollywoodiano: o filme de heist (ou assalto). Tarantino ainda era ninguém e dependeu da venda de dois roteiros originais que havia escrito – Amor à Queima Roupa (Tony Scott, 1993) e Assassinos por Natureza (Oliver Stone, 1994) –, para arrecadar o orçamento mínimo que levantasse a produção do longa. Outra aquisição importante foi a participação de Harvey Keitel que, ao receber o roteiro das mãos de sua esposa, aceita não só participar do elenco, como também bancar boa parte dos custos, ao se tornar produtor executivo.

É bem interessante perceber que, mesmo sendo o primeiro longa dirigido por Quentin, já era possível notar marcas estilísticas do realizador. A violência estilizada, a trilha sonora com clássicos da música pop, os diálogos longuíssimos e cotidianos, a sátira em cima do gênero escolhido e a subversão de padrões da narrativa clássica do cinema, são alguns exemplos. Vale lembrar que o filme também tem sua ordem cronológica alterada, usando diversas vezes o recurso do flashback para remontar a criação e dinâmica de um grupo de assaltantes, não tão inteligentes quanto parecem.

Outro aspecto que salta muito aos olhos é o domínio da diegese fílmica, principalmente no que tange à música. Diegese é um conceito cinematográfico (e até literário) que se refere à dimensão ficcional de uma narrativa. No caso, Tarantino opta por uma música diegética, em boa parte das cenas, algo que inclusive destoa do seu estilo de uso da música não diegética. O diretor inventa uma rádio ficcional que não só conta notícias e histórias relevantes que amarram a trama do filme, como, mais comumente, toca as músicas que estão sendo ouvidas em cena, não só pelo público, mas também pelos personagens presentes. Outro exemplo famoso, é a cena de tortura de Mr. Blonde (Michael Madsen) em um policial. Ele liga o rádio que toca a música primeiro no ambiente do galpão em que estão e, conforme a psicopatia de excitação do personagem com a violência vai crescendo, a música também vai rompendo o campo até ocupar o espaço extra-diegético: aquele ritmo está não mais no ambiente, como agora ocupa completamente a cabeça do personagem.

PULP FICTION: TEMPOS DE VIOLÊNCIA (Pulp Fiction, 1994) – Os caminhos de vários criminosos se cruzam, nessa antologia que reúne três histórias. Uma dupla criminosa procura concluir a missão a que foram incumbidos. Um fora da lei se apaixona pela mulher do seu chefe. Um boxeador não se sai bem em sua última luta, criando um plano de fuga malsucedido. Tudo isso interligado por um casal que executa um roubo que foge do controle.

O segundo filme de Tarantino e um dos mais premiados. Não poderia ser diferente, já que o filme recebeu a Palma de Ouro e o Oscar de Melhor Roteiro Original, no ano seguinte. O longa até hoje surpreende pela montagem inusitada ao embaralhar completamente a ordem dos eventos que ocorrem no filme, de modo que só é possível compreendê-lo ao chegar em sua última cena.

A temática de histórias diferentes que se interligam em um assunto comum é uma homenagem do diretor para as homônimas revistinhas pulp, características do início do século XX, marcadas por essa certa “esquizofrenia dramática”.

Tarantino demonstra o amor pelo cinema, ao abordar uma história que não se trata do tema, com as devidas referências e estéticas que merece. Nesse caso, o exemplo que mais fica evidente é a referência aos filmes da Nouvelle Vague francesa, movimento característico dos anos 1960, com diretores e filmes famosos, como é o exemplo do antológico Jean Luc Godard, com os filmes Acossado (1960) e Banda à Parte (1964). A relação amorosa presente no segmento de Mia (Uma Thurman) e Vincent (John Travolta) lembra muito o estilo francês, na construção de romance. A violência entrecortada, na cena em que Jules (Samuel L. Jackson) recita o verso de Ezequiel 25:17, e o freeze frame (tela sendo congelada) em momentos de intensidade, também são marcas do movimento francês, presentes em Pulp Fiction.

O maior mérito do roteiro aqui está na construção dramática e sensorial dos diálogos que o diretor escolhe para cada personagem. Primeiro, causando o impressionante: você conhecer a índole e camadas de personagens em pouquíssimo tempo, ao realizar exposição de diálogos frívolos, de forma muito elegante. Além disso, a aleatoriedade e superficialidade do conteúdo que está sendo dito, acaba escondendo a intenção dramática por trás de cada linha que leva a um evento importante do filme. Essa relação de causa e efeito pode ser mais bem observada no início da história de Vincent e Jules, ao conversarem sobre como se chama o Big Mac na França. Algo que poderia ser extremamente irrelevante, mas acaba mostrando o seu valor no momento em que Jules se utiliza da informação que acabou de receber para futuramente intimidar um de seus devedores, quando percebe que ele também come um sanduíche.

JACKIE BROWN (1997) – Jackie Brown (Pam Grier) é uma comissária de bordo que trafica dinheiro em suas viagens a mando do traficante Ordell Robie (Samuel L. Jackson). Todo o esquema vai por água abaixo quando dois policiais oferecem a Jackie um acordo que pode lhe dar liberdade, em troca de incriminar o perigoso mafioso.

Esse é o primeiro, e até agora único, filme que Tarantino escreveu se baseando em um material já existente. Em seu primeiro roteiro adaptado, Quentin escolhe por contar a história do livro “Rum Punch” de Elmore Leonard, adentrando pela primeira vez no terreno dos filmes de exploitaition. O gênero em questão, cuja tradução voltaria ao próprio termo “exploração”, vem do estilo de filmes, em geral independentes e nichados, que se utilizam de ferramentas apelativas, como a violência escatológica e a nudez explícita. São filmes geralmente feitos para um segmento ou camada social específicos.

Esse filme, homenageia algo que vai mais além dentro do gênero, que é o blaxpoitation: filmes feitos voltados para um público preto, característicos principalmente dos anos 1970. Mesmo não fazendo parte da vivência de Quentin, é perceptível a paixão estética que ele tem em relação a esse tipo de filme, dominando, com maestria, todos os elementos que o fundou. Ele se utiliza desses excessos, mas sabe muito bem pinçar o que é ou não útil para a história que pretende contar, sendo uma versão muito mais decantada do que era, estilisticamente, esse gênero anos atrás.

Há aqui a violência, os confrontos, os diálogos carregados de palavrões, a predominância de black music, além da obviedade de um elenco protagonizado por pretos. Tudo isso recoberto pelo guarda chuva narrativo de um filme policial, algo que já era marca do diretor.

KILL BILL (2003 – 2004) – Depois de se traída durante seu casamento por seu antigo grupo de quatro companheiros, a Noiva (Uma Thurman) acorda de seu coma, após levar um tiro na cabeça, e com sede de vingança mata cada um deles. Quem ela de fato busca confrontar é seu antigo amante e mestre Bill (David Carradine).

Tarantino inicia essa “vingança sangrenta” (palavras ditas pela protagonista) como uma homenagem a todas as referências cinematográficas e de cultura pop que ele conseguiria fazer em uma saga. É válido lembrar que esse longa foi filmado em conjunto, sendo divido em dois volumes, separados por um ano de lançamento, pelo simples fato da duração dos dois somados ser incompatível com qualquer exibição usual. Mesmo divididas, as duas partes são completamente complementares, inclusive na própria quebra de tom que se propõem.

Começamos a jornada em um tom frenético e imprevisível, no Vol. 1. O público precisa conhecer a protagonista, se colocar na sua vida conturbada e entender suas habilidades e fraquezas: faz sentido o ritmo ser acelerado. No Vol. 2, o drama humano e familiar toma conta, quando as escolhas internas que ela fez são levadas em conta nas consequências que recebeu: temos um ritmo mais lento. Essa quebra narrativa também se vê na questão do gênero, já que o Vol.1 é muito mais voltado para o cinema de Kung Fu e ação, enquanto, pelos recursos estilísticos, o Vol.2 poderia ser classificado como um spaghetti western, pela tensão e dramaticidade.

Da mesma forma que qualquer outro de seus filmes, aqui também temos uma carta de amor ao cinema: no caso, aos filmes de Kung Fu, principalmente dos anos 1970. A começar pela escolha de nomes antológicos para o gênero, como Sonny Chiba (The Street Fighter, 1974) e David Carradine (Série Kung Fu, 1972 – 1975). É claro que o holofote recai completamente sobre Uma Thurman, ao interpretar uma protagonista tão forte, determinada e sensível que alcançou um protagonismo feminino no cinema, no imaginário coletivo, até hoje. Além disso, também incrementa a trama (que é bem simples, no fim das contas), ao adicionar camadas como compromisso, responsabilidade, natureza humana e maternidade.

O filme, da mesma forma que Pulp Fiction, brinca com a montagem mais aparente na ordem dos eventos da história. Distante de uma ordem cronológica e linear, o diretor opta por escalonar os eventos, a partir da importância dramática que apresentam no todo. É muito interessante ver esse senso dramático no roteiro, ao perceber que tudo se apresenta na ordem que deveria estar e, portanto, na ordem que melhor serve a história. Esse valor da montagem também se percebe no âmbito micro, onde percebemos a subversão do diretor que altera a convenção de muitos planos entrecortados, característicos de uma sequência clássica de ação, e se utiliza de planos longos e intensos para marcar o fator western de um duelo de espadas, como acontece no final do primeiro.

DEATH PROOF (À Prova de Morte, 2007) – Mike (Kurt Russell) é um dublê profissional que vive seus dias na cidade de Austin, no Texas, junto do seu carro equipado para acidentes máximos. Em suas horas vagas, enquanto ele curte a noite, indo de bar em bar, ele exerce uma obsessão patológica de levar mulheres inocentes para um passeio mortal.

Tarantino flerta aqui mais uma vez com o gênero apelativo dos filmes de exploitation, explorando mais especificamente a estética dos filmes slasher, clássicos do cinema de terror dos anos 1980. Parte de um projeto em conjunto com o diretor texano Robert Rodriguez, Tarantino faria “o segundo capítulo” do que, nos cinemas americanos, foi exibido com o selo “Grindhouse”, junto do filme Planeta Terror, do mesmo ano. Cada um dos diretores então daria a sua versão e visão do amor que compartilham com os filmes B de terror.

A maior beleza desse filme do Tarantino é o seu teor despretensioso na construção da premissa básica do filme, algo que o aproxima também dos antigos slasher – já que esses filmes se baseavam inteiramente em um assassino à solta que vai matar um grupo de jovens, em determinado lugar. Isso tudo ainda é somado com a subversão dentro do próprio gênero, no ato final, fazendo com que o filme mude de tom, em seu meio – algo que ele também já havia experimentado em Um Drink no Inferno (Robert Rodriguez, 1996), roteirizado por Quentin.

Há aqui todos os clichês de filmes B de horror, adaptados à moda Tarantino: mortes violentas e gráficas, um grupo de adolescentes despretensioso e que só quer curtir a vida sem limites, o aspecto voyeurístico do assassino (que antes de matar, observa suas presas) e etc. A grande virada vem no final, quando acompanhamos agora um novo grupo de garotas que está prestes a poeticamente vingar o grupo anterior, quando vemos a inovação do predador se tornar presa.

Quentin Tarantino tem em sua obra filmes marcantes.BASTARDOS INGLÓRIOS (Inglorious Basterds, 2009) – Um grupo de judeus americanos, liderados pelo tenente Aldo Reine (Brad Pitt), durante a Segunda Guerra Mundial, espalha o medo e vingança contra o Terceiro Reich. Ao mesmo tempo, Shoshanna (Mélanie Laurent), dona de um cinema, na Paris sitiada, vê na première de um filme-propaganda nazista, a chance de se vingar de toda uma ideologia que lhe deixou órfã e isolada no mundo.

Tarantino arrisca, dois anos depois, e parte para uma estética que para ele, até então, era diferente e inusitada. Não só começaria uma sequência de filmes de época, historicamente situadas em períodos distantes ao seu lançamento, como marcaria esse “novo início” com um dos mais clássicos gêneros do cinema americano: o filme de guerra. É perceptível, já nesse trabalho, o cuidado maior que o diretor passa a apresentar com outros aspectos cinematográficos que predispõem a imersão do público, em filmes desse estilo, como é o caso da direção de arte, do design de produção, da maquiagem e até do figurino compatível com o momento histórico apresentado. Qualquer falha técnica, nesse sentido, imediatamente puxa para fora o público deste universo.

A cena inicial vale um comentário solo como representante de algo que o diretor explora, em diferentes proporções e intensidades, no filme inteiro. A apresentação do personagem Hans Landa – que inclusive concedeu a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante para Cristoph Waltz – é uma das mais bem escritas e pensadas no cinema, dentro do uso do suspense como ferramenta narrativa para contar uma história. Vindo da fonte de Hitchcock, Tarantino sabe perfeitamente como usar a direção para potencializar seu texto, enchendo a tensão do público, como uma bexiga, até o momento derradeiro que ela estoura. Nós, como público, já sabemos as consequências que a vinda inesperada de um general nazista pode causar em uma família simples do Sul da França, ainda mais se eles escondem judeus perseguidos. A cordialidade falsa e as palavras pomposas do investigador acabam por tornar aquela situação gradativamente mais perigosa.

A tão famosa morte de Hitler, baleado no meio do cinema em chamas, é uma das cenas que mais tornou o filme notório em seu tom satírico. Frente ao conhecimento popular e histórico que se gerou com o fim derradeiro do ditador, Tarantino aproveita esse espaço para tecer a sua crítica e suposição sobre os fatos. Acaba que essa morte, essa vingança, essa catarse funciona muito bem como uma justiça histórica, além de poeticamente dar um recado para a audiência de algo que já havia sido esboçado, como reflexão do filme História(s) do Cinema (Jean Luc Godard, 1988): talvez apenas o cinema (a arte) seja capaz de mudar a história.

Django Livre (2012)

DJANGO LIVRE (Django Unchained, 2012) – Django (Jamie Foxx) é um escravo do Sul dos Estados Unidos, quando encontra Dr. King Schultz (Cristoph Waltz) e passa a ser seu parceiro de trilha. Não só ambos se tornam uma excelente dupla de caçadores de recompensa, como Django percebe no doutor a chance de reaver a sua esposa, separada dele há tempos por um escravista.

Um dos filmes mais emotivos do diretor, onde ele adentra com profundidade quase no gênero que mais o inspirou: o Western. O amor que Tarantino tem pelo gênero; representativo da relação “mestre aprendiz” com Sergio Leone, diretor italiano de quem Quentin sempre disse ser muito fã; já havia sido explorado em todos os seus filmes anteriores: nas suas composições cênicas, na decupagem clássica ou até no direcionamento da tensão em um momento de suspense. A grande diferença é que aqui Tarantino faz um filme decididamente no velho oeste e que, por incrível que pareça, talvez tenha menos elementos de western do que os outros.

Marcando a subversão do diretor, talvez você não veja aqui locações características de um filme de velho oeste, um duelo mexicano clássico entre dois pistoleiros e etc. Tudo isso aparece, de forma bem mais elegante. O suspense, por exemplo, da cena de jantar, quando o personagem de Leonardo DiCaprio descobre que foi enganado pela dupla, substitui facilmente qualquer cena de um duelo clássico.

Outro grande mérito do diretor são as camadas interpretativas e sociais que ele interpõe em seu personagem. Você vê Leonardo DiCaprio interpretar um escravista vaidoso, amante da cultura francesa e apostador de lutas brutais entre escravos, mas que ainda assim têm a ignorância de uma porta. Samuel L. Jackson ganha a incumbência de interpretar o papel ingrato de um preto escravista, já mergulhado dentro do racismo estrutural que por tantos anos o “protegeu”, como servo de honra na Casa Grande e, ainda assim, sendo o personagem mais sagaz daquele império de algodão.

Esse foi o segundo longa que deu a estatueta de Roteiro Original para Tarantino e não é por acaso, já que dentro da sua filmografia, o longa se destaca pela habilidade que teve de interpolar três tipos de conflito dramáticos de forma orgânica e não panfletária. Há aqui um conflito externo bem estabelecido, de um homem que quer resgatar a sua esposa das mãos de malfeitores: arco que é o mais visível de se perceber durante a jornada. Junto a isso, ainda um conflito interno: Django se sente culpado por nunca ter conseguido proteger sua esposa como deveria. Ele se acha menor e covarde, frente às adversidades raciais que enfrenta. Tudo isso amarrado pelo conflito filosófico mais evidente, nesse tipo de filme: a disputa racial de um sistema escravista. Vemos a dominação e ignorância dos antagonistas do filme serem subjugadas pelos preceitos de liberdade e esclarecimento, característicos do protagonista.

OS OITO ODIADOS (The Hateful Eight, 2015) – Depois de passar por uma nevasca rigorosa, John Ruth (Kurt Russel) e Marquis Warren (Samuel L. Jackson) decidem se abrigar em um “armarinho” da região. O que eles não contavam era com a presença de quatro estranhos que começam a ameaçar a sua tentativa de uma estadia tranquila.

Até hoje o filme com maior duração na carreira do diretor (187min), inclusive sendo exibido no circuito americano em atos, com um intervalo no meio. É o filme mais verborrágico de sua carreira e paralelamente o mais teatral. Tarantino usa e abusa da sua habilidade de escrita de diálogos para desenvolver a história, os personagens, o suspense e as intrigas, tudo isso unido pelo bom humor e a sátira de cada palavra escolhida. O mesmo já revelou várias vezes a intenção do texto desse filme poder ser encenado, outras e outras vezes, no palco do teatro por outros atores.

Outro elemento que é gritante nas escolhas do diretor é a fotografia em UltraPanavision 70. Talvez a maior transgressão (à primeira vista), já que se convencionou o uso da lente em 70mm para takes mais vastos e amplos, característicos de tomadas externas e planos abertos. A diferença é que 99% do filme se passa em um ambiente claustrofóbico e recluso. A habilidade da direção aparece no uso da lente para também dar destaque e visibilidade para o que não está aparente no primeiro plano: mesmo que você esteja concentrado na ação imediata de um ator que se encontra no centro do enquadramento, ações acontecem com os outros nos cantos da tela. A trilha sonora de Ennio Morricone é outro ponto de destaque – inclusive dando a primeira e única estatueta para o compositor. O tom mais enervante e ritmado da composição auxilia no encaminhamento emocional que o diretor apresenta em seu mistério.

O filme é uma carta de amor aos filmes de suspense dos anos 60, com um maior apego ao cinema de Alfred Hitchcock. Tarantino, de forma análoga, conduz a expectativa do público em um mistério – no maior estilo Agatha Christie – que começa a se desdobrar lenta e gradativamente até o momento de catarse final. O intervalo no meio do filme, nesse caso, serve inclusive não só como parte da homenagem que o diretor faz às obras dessa época, mas também como ponto narrativo de mudança de tom no filme: uma primeira metade onde o mistério se instala e os personagens se apresentam, e uma segunda metade onde os conflitos são estabelecidos e o enlace se desenrola.

ERA UMA VEZ EM…HOLLYWOOD (Once Upon a Time In…Hollywood, 2019) – Na antiga Hollywood de 1969, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um astro de TV que tenta descobrir seu espaço na indústria do entretenimento que começava a mudar. Para isso, ele conta com a ajuda de seu melhor amigo e dublê Cliff Booth (Brad Pitt). Somado a isso, Sharon Tate (Margot Robbie) tenta compreender os frutos que colheu, depois de uma carreira de atriz de sucesso.

O filme com o elenco de mais peso na filmografia do Tarantino por juntar tantos nomes icônicos para a indústria hollywoodiana em uma só história. Outro aspecto relevante é o domínio quase pleno dos recursos técnicos de um filme. Talvez pela maturidade da direção que já passou por oito trabalhos anteriores, além de uma maturação pessoal de Quentin, seja mais latente perceber o uso imagético do design de produção que recria perfeitamente uma Los Angeles de 50 anos atrás, na estética filmada na época. O design de som também merece seu destaque ao orquestrar não só as músicas com os diálogos em cena, mas também para dar peso narrativo para personagens, situações e reviravoltas, apenas com o uso de efeitos sonoros. Da mesma forma que a imagem, o som contribui para construir a atmosfera hiper-realista do filme, fazendo o ocorrido sempre estar um passo além da realidade, sem nunca parecer falso.

A trilha sonora é um filme à parte, já que Tarantino opta novamente por construir a atmosfera sonora com o uso da música diegética que toca na rádio, ressaltando a passagem de tempo do dia e a contextualização da época. Em alguns momentos o filme apresenta um ritmo um tanto bonançoso (e para alguns monótono), mas isso pode se justificar pelo apego do diretor ao trabalho filmado, ou mais ainda pelo protagonismo de Brad Pitt nessas cenas específicas que são mais contemplativas. Cliff Both é um personagem que está de bem com a vida, que está em paz com o lugar que vive, mesmo sendo um fracassado e tendo um passado nefasto. Essa tranquilidade talvez combine com o ritmo escolhido nas devidas cenas.

Sem dúvida, o personagem de maior expressão do filme é protagonizado por Leonardo DiCaprio que faz a versão humanizada de um artista que não consegue fazer suas emoções acompanharem as mudanças de sua vida. O resultado é a comicidade de um fracassado que tenta o seu máximo, numa indústria que é muito competitiva, como Hollywood.

ERA UMA VEZ EM…HOLLYWOOD  é um filme sobre, de e para o cinema. Tarantino destila todo o seu amor pela arte e pode, em algumas interpretações, parecer autoindulgente, mas a sensação que fica é o afeto que o diretor tem com a arte. Exemplo disso são as constantes recriações de cenas de filmes e programas de TV antigos, filmados como na época, mas ainda com a estética marcante do seu realizador. Tudo isso somado a justiça histórica óbvia que o diretor propõe, com o seu final fantástico (e também fantasioso).

Rota Cult
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Redação do site E-mail: contato@rotacult.com.br

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