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A lucidez sem capotes: Milhem Cortaz esgrima com o texto de “Diário de um Louco”

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Por Rodrigo Fonseca – Tennessee Williams (1911-1983), um dos muitos búfalos da criação dramatúrgica a quem o ator Milhem Cortaz pastoreou nos palcos avisava: “Se eu me livrasse dos meus demônios, eu perderia os meus anjos”. Naquela máxima do “quem avisa, amigo é”, o autor de “Um Bonde Chamado Desejo” (1947), apontou o caminho da angelical libertação do inconsciente vivida pelo eterno Capitão Fábio de Tropa de Elite (Urso de Ouro de 2008) e agora no palco do CCBB RJ, sob a direção de Bruce Gomlevsky.

Sob a lã grossa do capote simbólico de Nikolai Vasilievich Gogol (1809-1852), Milhem Cortaz esgrima com o texto de “Diário de um Louco” (1835) de modo a esculpir vida no barro fresco da embriaguez inerente à perda dos códigos penais da razão. Busca o volume adequado à escultura de gente que almeja construir sem precisões matemáticas, mas adorna a criação com a fúria salivada que lhe deu fama.

Milhem Cortaz
Foto: Priscila Frade

Há 20 anos, quando Carandiru disputou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2003, ao mesmo tempo em que contabilizava 4,7 milhões de pagantes em circuito, Milhem tinha sangue no olho e nas mãos no papel do matador Peixeira. Sob a direção de Hector Eduardo Babenco (1946-2016), o ator que já vinha se destacando na cena teatral paulistana explodia na telona de todo o país. Duas décadas depois, ele veio a despejar a saliva raivosa de sua persona no streaming, como astro de “Os Outros”, minissérie da Globo. Vemos a parte da forma como ele vê o mundo converter angústia em espuma, da boca para fora.

Agora, sua saliva vira água benta do Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB – RJ), onde ele empresta sua ossatura para “Diário de um Louco”. Cada gota umedece o chão onde ele faz uma jira – efeito ritualístico de uma interpretação – zangada em busca de sentido, digladiando-se com verbos de Gogol, sob a direção de Bruce Gomlevsky.

No palco, a Água benta é a poção que cura quebrantos e afasta o Mal. O Mal que está em cena ali é o da submissão civilizatória, o Mal da castração da subjetividade livre é amordaçada por interditos da linguagem. Enquanto, o desvario de seu personagem promove a autopsia (em corpo vivo) da sanidade de um tempo histórico, a Modenidade, onde avanços do progresso industrial colidiam com os excessos injustos do capitalismo.

Apocalíptico, o estonteante cenário de Nello Marrese, por onde Milhem Cortaz perambula, é formado por esqueletos de guarda-chuvas. Essas estruturas de sombrinhas quebradas compõe o quarto onde mora o protagonista, o funcionário Poprishchin. Lá ele toma sopa e come banana com uma fome de anteontem, mascando e falando, qual um fala-a-dor, no desespero de quem já não consegue separar imagem de ação, nem da imaginação.

Além disso, o espaço cênico funciona como perímetro de intimidade, que deveria implodir, numa leitura corriqueira de Gogol. Em geral, a dinamite Gogol vai de fora pra dentro. Contudo, nesta virulenta montagem, Gomlevsky leva Milhem a explodir, para fora, em 3D, espalhando sua magma para todo lado, intempestivo, com direito a avanços do monólogo para a plateia, num aperto de mão ou numa encarada selada na troca de olhares.

Temperaturas e pressões saem de sua condição normal sob a iluminação apolínea de Elisa Tandeta, operada por Rodrigo Miranda, que sublinha esse avançar do ator. Nas carrapetas do áudio, Glauce Guima, ao operar o som com destreza, sabe o friso certo para os vulcões que entram em erupção no palco.

Em “Diário de Um Louco”, vemos o vomitório de uma Rússia em transformação. A História entra em cena como um vetor, surpreendentemente, que catalisa as pulsões de voz de Poprishchin. Sua língua tenta ser a expressão de uma época em mutação, mas seu cérebro difuso trai sua percepção. No amalgama do delírio com o dia a dia, nasce uma realidade traiçoeira, uma cobra que nos dá seu bote sob o veneno de um ator em estado de graça. Quando ri, Milhem gargalha o humor louco de um império que rui.

Sua composição, certamente, conversa com seu trabalho no curta-metragem “Cavalo” (2010), de Joana Mariani, também centrado numa consciência que trota, sob os cascos de uma nova linguagem. Uma linguagem avessa a gramáticas do comportamento social. Nessa operação o que vemos é um dos maiores trabalhos de interpretação do teatro brasileiro em 2023.

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