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“Brás Cubas” traz estética ectoplasma em releitura de Paulo de Moraes

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Releitura de Paulo de Moraes faz uso do conceito “necropolítico”.

Levado às telas no início do ano, na Berlinale, por Robert Schwentke, com John Malkovich no papel central, o filme Seneca: On The Creation of Earthquakes, ainda inédito aqui, resgata um debate do polêmico orador de uma Roma pré Cristo sobre o lugar estoico da finitude. Esse debate é, certamente, mais do que essencial para apreciar(mos) mais (e melhor) o diálogo cênico travado com “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) pela trupe da Armazém Companhia de Teatro.

Foto: Mauro Nury

O filósofo que aconselhava Nero dizia, “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte”. É dessa Necropolítica, a capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada por um Estado intolerante – que fala a releitura de Machado de Assis (1839-1908).

A releitura de “Brás Cubas” por Paulo de Moraes, tem assinatura visual peculiar de sua obra autoral, sob a dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça. O uso do conceito “necropolítico” se encaixa com perfeição ao recorte crítico da peça. Aliás, o encaixe se dá pela presença do próprio Machado em cena.

Bruno Lourenço dá voz, corpo e fúria (na medida machadiana) ao Bruxo do Cosme Velho, fazendo dele um istmo que liga a ilha literária das elocubrações do mais famoso defunto autor de nossa prosa – Brás Cubas – ao continente do racismo em nossa contemporaneidade.

Dramaturgicamente trifurcado entre o tempo da Morte, o tempo do Passado de Brás e o tempo da criação e reflexão de Machado, o espetáculo parece gravitar em torno de uma ideia dita por um outro artista de verve autoral recentemente associado ao autor de “Dom Casmurro” (1900), o cineasta Julio Bressane. Ao lançar Capitu e o Capítulo em cartaz nos cinemas, Bressane cravou: “A memória é um depósito de profecias”. Profético desde a essência, “Memórias Póstumas….”, o livro, foi clarividente em antecipar, em sua fina ironia, a microfísica do poder que ditaria o século XX e o XXI, pelo menos até a eclosão de um recrudescimento das lutas identitárias. Porém o conceito bressaniano de profecia não se reporta apenas ao “vir a ser” no torvelinho da História, mas, também, ao lado místico do termo, sua dimensão ritualística, espectral, erosiva quando em contato com as palafitas do Real. É justamente essa a dimensão da nova peça de Paulo de Moraes.

“Brás Cubas” é, certamente, de uma elegância cênica exuberante no figurino confeccionado por Carol Lobato e na cenografia pensada pelo diretor com Carla Berri, cuja argamassa é ectoplasma, unidade matemática espiritual da morte. Além disso, a iluminação translúcida de Manco Quinderé traz a opacidade do mundo material ganha um colorido metafísico.

Numa divertida declamação de si mesmo, despoetizada, o Defunto Brás (Jopa Moraes) brinca de fala-a-dor, dando voz a um ontem e a um anteontem, no pretérito imperfeito de sua própria jornada pela Terra, que pode ou não ser verdade. Morreu, reinventou-se. Embora alegue que “a franqueza é a principal virtude” de um morto, ele não carrega a verossimilhança como um de seus atributos, sobretudo por usar o filtro da ironia para contar quem foi. Essa instância do “foi aí” (uma espécie de galeria de fotos vivas do que talvez tenha feito em vida), é encarnada em Sérgio Machado, cuja atuação lembra Buster Keaton. Brilhante em cena, Sérgio, surpreendentemente, nos faz pensar no Palhaço Que Não Ria, mito da comédia no cinema mudo, com seu gestual sempre perplexo, quase trágico, diante do Brasil moderno que testemunha.

“Brás Cubas”
Foto: Mauro Cury

Sob os comentários mordazes trazidos por Jopa, “Brás Cubas” conta com um elenco em equilíbrio pleno fricciona as profecias de Brás sobre esse tal Brasil, deixando as brutalidades racistas (como um ardil contra uma empregada envolvendo um doce de coco negado) em foco. Tudo se passa ao som de uma trilha sonora charmosa, ora conduzida por Ricco Viana, ora por Rafael Tavares, com direito a uma versão instrumental da “Mona Lisa” de Nat King Cole.

Sob acordes que vão da valsa ao pancadão, bem rimado pelo Machado de Bruno Lourenço, Felipe Bustamante faz seus solos como Quincas Borba, dimensionando os desajustes sociais que põem no chão os pés daquelas “memórias póstumas”. Esses pés bailam e saltam para o Infinito movido por duas atrizes em estado de graça em cena: Lorena Lima e Isabel Pacheco. Cada uma segue uma linha de atuação, mas a sinergia é, lindamente, plena, ressaltando a força do feminino naquele contexto de época e no universo de Machado.

Lorena solta a voz em cantos, desfiando arquétipos grã-finos e traduzindo toda a potência empoderada de Marcela, uma das paixões de Brás. Já Isabel é uma comediante de mão cheia, levando uns traços de cartum para a figura de Virgília – e para suas demais impecáveis inserções no palco – ressaltando a gravidade afetiva que cabe ao texto de sua personagem na medida e na hora certas.

Com esse coletivo, Paulo de Moraes reitera a habilidade de fazer painéis cronistas, de muitas vozes, como se viu em “Casca de Noz” e “Pessoas Invisíveis”. É um painel no qual o espírito zombeteiro de Brás Cubas não é encosto e, sim, avatar para iluminar nossa cautela em relação às arapucas da institucionalização da desigualdade.

Confira o serviço completo da peça!

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