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Prata que não oxida: Texto de Antonio Prata adentra com humor os palcos

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Obra literária de Prata e seu olhar cronista ganha os palcos.

Tem um poeta catarinense, Lindolf Bell (1938-1998), responsável por dois aforismos essenciais ao entendimento do espírito lírico de “Muito Pelo Contrário”, peça de Antonio Prata. O primeiro: “Há sempre duas solidões que se aguardam”. O segundo: “Menor que meu sonho não posso ser”. O sonho de Rodrigo, o protagonista do espetáculo, tem a dimensão de uma bala Halls, da preta, aquela de eucalipto mais gélido. Pelo menos é o que ele supõe.

Emilio Orciollo Netto - Muito Pelo ContrárioExercícios tântricos utilizando o tal rebuçado fazem parte do passado afetivo de Rodrigo, uma figura a quem o ator Emilio Orciollo Netto dá uma composição no meio do caminho entre o Steve Carell de O Virgem de 40 Anos (2005) e o Alvy Singer interpretado por Woody Allen em Annie Hall (1977). Ele é o noivo neurótico e a noiva nervosa numa pessoa só, uma pessoa que come maçã com mostarda.

Além disso, as referências hollywoodianas desse sujeito encapsulado em suas ansiedades pós pandêmicas são meros adereços para um trabalho de (auto)escavação precioso que Orciollo faz na própria persona. O papel de Giuseppe em “O Rei do Gado” (1996-97), novela-analgésico que ajudou o Brasil a enxergar a enxaqueca da falta de reforma agrária, lapidou um talento capaz de explodir em cena, numa mistura de melodrama e drama realista. O Marcello de “Esperança” (2002) e o Crispim de “Alma Gêmea” (2005) consolidaram essa hipótese: a de que o folhetim brasileiro tem um ator capaz de um arranjo entre o excesso e a elegância. Coisa tipo do que Cláudio Cavalcanti e Milton Moraes faziam pela teledramaturgia, lá atrás. Orciollo tem algo deles.

De costume, na telinha e na telona, Orciollo é o “gente como a gente” testado pelos reveses da ficção. O ótimo Edivaldo, vivido por ele no filme Por Trás do Céu, é, certamente, a coroação desse estilo. Até no humor ele segue essa linha, vide o Fonsinho do subestimado “E Aí… Comeu?” (2012), espécie de Se Beber… Não Case do cinema brasileiro. Rodrigo, o personagem que Prata oferece a ele, vai nessa linha. É o amigo da pelada ou o colega do escritório, aquele que a gente resume a uma condição coadjuvante na dramaturgia do dia a dia, mas que esconde dentro de si um universo em casca de noz.

Em geral, a obra literária de Prata, em seu olhar cronista, tem essa linha, que contaminou a (bela) série “Pais de Primeira”, escrita por ele para a TV Globo. Suas crônicas são grávidas de Brasil. Carregam uma placenta de brasilidade viscosa, mas transcendem o topos da geografia numa transcendente (e universal) cartografia do (bem)querer, em brechas afetivas onde ele se expõe para além do arcabouço intelectual que o escuda.

Sob uma direção veloz de Vilma Melo e Victor Garcia Peralta, num tempo lépido que evoca a série “Mad About You” a cada minuto, o texto de Prata inventar com extremo bom humor, e duas colheres de xarope de Pop, a vida de Rodrigo durante a pandemia, e um pouco após dela, numa estrutura de monólogo palavrosa, porém, precisa.

Cuspe ali seca de tanto verbo. O riso, não. Qual o coelho Ricochete dos desenhos animados, Orciollo saltita pelos vértices do palco a cumprir tarefas domésticas de um pai que se propõe a ser legal, narrando pra gente essa sua hercúlea tentativa de peito aberto. A música à la Randy Newman (trilheiro de Toy Story) de Plínio Profeta, na suavidade máxima, aclimata a plateia para o rasga coração do personagem.

Aliás, Profeta acha sempre o acorde certo para acochambrar as exasperações de narrativas de tom existencial – vide seu trabalho excepcional no filme Nosso Sonho. A força de sua trilha galvaniza a ambientação da peça, proposta no cenário de Mina Quental, que circunda Orciollo com elementos de um típico lar de recém-nascido. Acima do ator, fileiras e fileiras de roupas de bebê estendidas saltam os olhos do público com sua alvura de amaciante Fofo. Aos lados, infinitas caixas plásticas de armazenamento, encaixadas como tijolos, formam um Lego vivo no palco. Vivo e translúcido. Ao centro, há um ferro e tábua de passar roupa, que são utilizados, constantemente, pelo astro. Tem ainda uma pequena mesa com cadeiras e uma geladeira com condimentos amarelados.

São os baobás do asteroide de classe média onde Rodrigo narra seu processo de vida a dois… e, depois, a três, com Gabi e um neném. Eles são pais de primeira viagem. Seu filho nasce junto com a chegada da Covid-19. Depois de dois anos às voltas com fraldas, muita amamentação, madrugadas em claro e uma rotina até então totalmente desconhecida, agravada pelo confinamento, eles sentem o peso do desgaste e buscam passatempos um tanto ilícitos.

Quando Rodrigo começa a achar que sua vida sexual acabou, conhece no trabalho uma mulher que lhe desperta o desejo. Culpado, ele passa a peça a se perguntar se seria ou não um erro ter um caso com ela, ainda que por uma noite apenas. A sagacidade de Prata está em não dar a essa reflexão o tom já surrado de Complexo de Peter Pan. Não se trata de um homem imaturo em busca de satisfação imediata, trata-se de um estudo daquele tal sonho de que Lindolf Bell falava que, vez por outra, apequena a gente. Trata-se de um estudo sobre o vácuo que nasce mesmo quando a gente acredita que a solidão acabou.

Enfim, num Bloco do Eu Sozinho, Orciollo garimpa gargalhada no que existe de tragicômico no mal mais danoso da vida em sociedade: a acomodação. Portanto, não aceite que a peça é apenas uma comediazinha pra aliviar e desopilar., “Muito Pelo Contrário”, literalmente. Prata dá ao teatro carioca a imersão num mal-estar civilizatório que esquenta a barbárie em lente quente. A barbárie do descaso. É contra ela que a peça se impõe, num epílogo de inusitado e refrescante romantismo.

Confira o serviço completo da peça!

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