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As 4 filhas de Olfa: Kaouther Ben Hania cria docudrama para falar de Feminismo

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Ficção ou realidade? Uma das vantagens de entrar no cinema como uma tela em branco é ser totalmente e positivamente (às vezes, negativamente) surpreendido pelo desenrolar da história diante dos nossos olhos. Isto não quer dizer que não devamos ler uma crítica como esta, por exemplo, antes de ver um filme. Se ela não tiver spoilers, não existe nenhum problema em se ler um texto crítico previamente, mas mesmo bons textos, sem spoilers, podem, digamos, macular a experiência dos espectadores. Bom, sei que, agora, neste exato momento, algumas pessoas acabaram de fechar o navegador e só irão voltar após assistir ao longa-metragem As 4 Filhas de Olfa, em cartaz nos cinemas do Brasil, a partir desta quinta-feira (07/03).

As 4 filhas de Olfa

A pergunta que abre esta crítica só existiu e reverberou, na minha mente, por quase 110 minutos de projeção, justamente porque eu não li absolutamente nada sobre este filme tunisiano dirigido pela cineasta Kaouther Ben Hania. Na trama, somos apresentados ao trio Olfa, Eya e Tayssir, mãe e filhas, mulheres árabes separadas por questões geracionais: a progenitora de lenço na cabeça, vestida de uma forma mais sóbria, enquanto as meninas trajam vestimentas típicas das adolescentes modernas. Mas cadê as outras duas? Não eram quatro? Uma voz em off informa: “Vou tentar contar a história das filhas que foram devoradas por um lobo, Ghofrane e Rahma”. Neste instante, o questionamento inicial já reverberava dentro de mim: a voz é mesmo da diretora? As três mulheres que aparecem em cena são, de fato, Olfa, Eya e Tayssir? E a história do lobo é verdadeira ou não? Perguntas e mais perguntas.

A forma como Kaouther decidiu realizar o seu longa não ajuda, de imediato, a esclarecer qualquer dúvida! Fugindo da narrativa convencional, a cineasta optou pela metalinguagem e por um estilo que podemos chamar de docudrama. Há dois filmes ali: o que estamos vendo e que poderia facilmente ter sido indicado ao Oscar de Filme Internacional este ano, uma vez que era o candidato da Tunísia; e, dentro deste, outro, feito de cenas dos bastidores de suas próprias gravações. Desta forma, a narrativa começa um pouco arrastada e por esta razão, talvez, demore a cativar e a prender a atenção do público. No entanto, as coisas pegam no tranco quando passamos a ver menos depoimentos cara a cara com a câmera e a ver mais cenas ensaiadas.

Atriz ou não, Eya é ótima! Por consequência, a dinâmica que ela constrói com sua irmã (ou não) Tayssir e as atrizes escaladas para viverem Ghofrane e Rahma seguem igualmente na mesma linha de atuação. De algum jeito, me lembrou muito a dinâmica das irmãs de Cinco Graças, belíssima e comovente obra turco francesa de 2015.

Nascidas nos anos de 1998, 1999, 2003 e 2005, o contexto histórico é bastante importante para compreendermos as mudanças pelas quais passam Ghofrane, Rahma, Eya e Tayssir. De 1987 a 2011, a Tunísia foi governada pelo general Ben Ali, um ditador que prezava por um país secular, ou seja, longe da influência religiosa do Islã, diferente do que ocorria em outros países árabes. Todavia, desgastado por escândalos de corrupção e com a perda de apoio nos círculos militares, ele foi derrubado pela “Revolução de Jasmim”, um dos muitos movimentos do que ficaria conhecida como “Primavera Árabe”, a série de levantes que abalaria o status quo daquela região. Aliás, a participação das mulheres nesses movimentos foi muito importante, mas, em compensação, a mudança de equilíbrio na balança entre o secularismo e a religiosidade, pelo menos entre os tunisianos, foi grande. Se no início dos filmes as quatro meninas se portam e se trajam de maneira secular, no decorrer dos mesmos ocorre uma mudança significativa que vai afetar o futuro de todas elas. E, claro, da mãe delas, Olfa.

Fazendo uso, com parcimônia e inteligência, de cenas extraídas de programas jornalísticos da Tunísia, o que acaba por acrescentar mais uma faceta documental ao cômputo geral, o filme ou os filmes, como vocês preferirem, de Kaouther Ben Hania jogam um pouco de luz sobre as questões feministas no mundo árabe do Século XXI. Reais ou não, as personagens de As 4 Filhas de Olfa parecem bastante críveis e ao termos acesso às suas histórias, lágrimas e sorrisos, isso nos faz acreditar que somos, embora verdadeiramente não sejamos, pelo menos homens como eu, capazes de compreender as dores de ser mulher em uma sociedade patriarcal e religiosa.

Como escrevi mais acima, As 4 Filhas de Olfa poderia facilmente ter sido indicado ao Oscar de Filme Internacional, agora em 2024. Cortado na última seleção, quando nove filmes ainda estavam na disputa, ele é tranquilamente melhor do que um dos cinco indicados. Felizmente, ele conseguiu a indicação ao Oscar de Documentário. Pronto, está desfeito o mistério suscitado por aquela pergunta inicial. Ainda assim, eu aconselho que vocês corram até o cinema mais próximo e conferiram logo este belíssimo trabalho da cineasta Kaouther Ben Hania. Tenho quase certeza de que, ao término da sessão, mesmo com o mistério desfeito, a pergunta continuará reverberando na cabeça de muita gente: ficção ou realidade?

Desliguem os celulares e uma excelente diversão!

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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