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Clube Zero e a doutrina radical da alimentação “saudável”

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É notório como a comunicação de massa, feita de forma organizada e sistemática, potencializou o alcance do poder de convencimento de políticos, de líderes religiosos ou simplesmente de mero aproveitadores. Primeiro veio o rádio, depois a televisão e por último a Internet, estes canais são as ágoras e as praças modernas. Os espaços públicos onde as pessoas se reúnem para ouvir aqueles que detém a palavra deixaram de ser locais e passaram a ser globais. No entanto, nada disso invalida a ação localizada. Se você tem algo a dizer e, na sua comunidade ou no seu trabalho, dá a sorte de encontrar pessoas dispostas a te ouvir, você tem tudo o que precisa para conquistar mentes e corações. No concorrente à Palma de Ouro, no Festival de Cannes 2023, Clube Zero, dirigido e corroterizado pela cineasta austríaca Jessica Hausner, a protagonista, Miss Novak, interpretada pela atriz Mia Wasikowska, deu essa sorte.

Clube Zero

Clube Zero se passa em uma escola para ricos de um algum lugar indeterminado. Há apenas algumas cenas externas. Este lugar pode ser tanto nos Estados Unidos, quanto na Grã-Bretanha ou até mesmo em um país escandinavo, mas isso não importa porque, embora a trama seja local, os temas abordados são todos globais. Renomada especialista em nutrição, a ponto de ter o seu rosto estampado nas caixas de um chá emagrecedor, Miss Novak é contratada, por indicação da associação de pais da instituição, para lecionar sobre “consumo consciente” no que chamamos por aqui de uma disciplina eletiva. Ao recepcioná-la, a diretora, Miss Dorset (Sidse Babett Knudsen), a adverte que o seu público, provavelmente, será muito pequeno, porém, seleto e importante. Contribuir para a melhoria da alimentação de seus alunos é um dever da escola.

Inicialmente, a classe de aula é composta por sete estudantes, mas, com o tempo, dois pulam fora assustados com o radicalismo de algumas das ideias propostas. Com os demais a nova professora constituirá um vínculo estreito e íntimo. Os cinco, Elsa (Ksenia Devriendt), Ragna (Florence Baker), Fred (Luke Barker), Ben (Samuel D. Anderson) e Helen (Gwen Currant), estão lá por razões completamente distintas. Uma é atleta e deseja perder peso para se manter competitiva. O outro precisa melhorar suas notas para assegurar uma bolsa e assim continuar estudando naquela respeitada instituição. Além disso, há também aquela que se preocupa com uma alimentação mais consciente por questões ambientais. E o problema não está nas razões que conduziram cada um deles até ali, mas, como já citado, no radicalismo que afugentou os outros alunos. Estas razões, na verdade, só os tornam mais vulneráveis aos encantos de alguém que tem algo a dizer e uma mensagem a transmitir.

Em Clube Zero, a protagonista não concorre a um cargo político ou lidera uma religião. Todavia, sua maneira de lecionar tem, sim, um quê messiânico e messias, normalmente, não se relacionam bem com a oposição. O jeito como Miss Novak incute seus conceitos e suas crenças na cabeça dos alunos, o modo como ela vai doutrinando e catequizando a turma, pode ser tranquilamente comparado à maneira e ao modo de agir de uma destas seitas religiosas que tem como objetivo controlar seus fiéis. Não existe outro caminho para a salvação a não ser o que passa obrigatoriamente por ela e no caso devemos entender como salvação o caminho para uma vida mais saudável. O resultado é simples, entretanto radical: uma vez doutrinados e catequizados, os cinco jovens se isolam do resto do mundo e entram em confronto dentro de casa. Eles também não aceitam a oposição. Se a professora conseguiu este resultado no espaço de uma sala de aula, o que ela faria com um meio de comunicação de massa em suas mãos?

Sexto longa-metragem da diretora Jessica Hausner, Club Zero é vendido como um thriller e uma comédia de humor sombrio. O filme foi recebido por uma audiência dividida em Cannes e seus detratores reclamaram de um possível excesso de escatologia, uma grande bobeira, por sinal, uma vez que esta reclamação não faz nenhum sentido. Em 110 minutos de projeção, existe somente uma cena escatológica e trata-se de algo totalmente contextualizado, ou seja, a cena tem uma razão e um porquê de estar ali. Neste ínterim, houve, inclusive, quem o classificasse como o pior da mostra 2023. Mesmo sem ter visto a maioria dos filmes desta edição do festival francês, tenho certeza de que este rótulo que tentam imputar à obra da realizadora austríaca é só mais uma falácia dos seus detratores, já que o longa parte de uma proposta interessante, é tecnicamente impecável e conta com um elenco em perfeita sintonia. Na realidade, o problema está em uma certa indefinição em relação aos rumos da história.

Assistindo à Clube Zero é impossível não pensar em A Onda, filme alemão de 2008 dirigido por Dennis Gansel. A correlação é gritante. Na obra germânica, para ensinar sobre “autocracia”, ao ministrar uma disciplina eletiva, o professor Rainer Wenger (Jürgen Vogel) instrui os seus alunos a colocarem em prática, diariamente, todos os conceitos de uma “autocracia”. Da mesma forma que Miss Novak, Wenger vai, aos poucos, doutrinando e catequizando a sua classe, só que com uma diferença fundamental: ele está realizando um experimento, enquanto ela realmente acredita no que prega. Em ambos os casos, os exercícios acabam saindo do controle e aí reside outra diferença fundamental: como manda o figurino dos bons thrillers, a obra de Gansel se encaminha para um desfecho catártico e tenso. Já a de Hausner não, deixando no ar a impressão de que a diretora não sabia onde gostaria de chegar com a sua história.

Desliguem os celulares e boa diversão!

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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