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Tesouro é uma dramédia comovente sobre o Holocausto

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Revisitar o passado é quase sempre bastante complicado, as memórias, sejam elas boas ou ruins, encontram-se em uma zona pantanosa do nosso cérebro, envolva por um nevoeiro turvo que tende, com o passar do tempo, a pregar peças. Funciona como uma espécie de mecanismo inconsciente de defesa: tudo de bom que aconteceu conosco tende a parecer melhor do que realmente foi e tudo de ruim tende a parecer não tão ruim quando de fato pode ter sido. Deste modo, quando realizamos este exercício de revisitação, as possíveis reações também tendem a nos surpreender, reações que podem oscilar do riso frouxo ao choro copioso. Certamente, uma verdadeira catarse. Uma adaptação cinematográfica do romance “Too Many Men”, ainda sem tradução para o Brasil, Tesouro, filme dirigido pela cineasta alemã Júlia von Heinz, traz essa catarse em forma de fotogramas. 

Tesouro

No filme, roteirizado pela própria diretora em parceria com John Quester, acompanhamos Ruth (Lena Dunham), uma jornalista nova-iorquina, filha de pais judeus-poloneses, sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, que decide visitar a terra natal dos seus progenitores. O seu objetivo é conhecer o lugar onde eles nasceram, brincaram e cresceram. Entrar em contato com uma história que ela não teve a chance de ouvir em casa, evidentemente, por causa dos traumas e dos rupturas emocionais provocadas pelo Holocausto. No entanto, o que era para ser uma viagem solitária se transforma em um tour em família quando o seu pai, Edek (Stephen Fry), decide ir junto. E é aí que a catarse toma forma, pois as lembranças não são dela, mas dele. Com a desculpa de resguardá-la, o pai tenta, de muitas maneiras, sabotar a viagem, só que, na real, o que ele está fazendo é uma tentativa inútil de se proteger das traumas. 

Sem ter lido o romance escrito por Lily Brett, a Ruth da vida real, já que o tour realizado pela jornalista e por Edek é inspirado em uma viagem da autora com seu pai, Max, à mesma Polônia, é possível dizer que estamos diante de uma boa adaptação cinematográfica, uma vez que livros e filmes possuem linguagens completamente diferentes e não é obrigatório conhecer o primeiro para avaliar o segundo. O texto de von Heinz e Quester é limpo, fluido, jogando o espectador direto para o cerne da ação. Na cena inicial, encontramos a protagonista em um aeroporto polonês e enfrentando problemas com o idioma. Edek perdeu o voo e chega um pouco depois, em outro avião, tranquilo, sereno, contrastando com a apreensão da filha. Esta abertura pontua de forma bastante eficaz que, apesar da seriedade do tema, a história terá, sim, espaço para pequenas pausas e respiros. Independentemente da obra original, produções para o cinema precisam se comunicar rapidamente com o público, ganhando-o de modo a garantir a audiência pelas próximas horas. Livros você pode sempre parar e voltar quando estiver pronto. 

Fruto, provavelmente, de uma decisão de cunho dramatúrgico, os respiros, introduzidos desde a primeira tomada, vêm sempre por meio do roteiro, sendo os diálogos deste ressaltados e sublimados pelas cativantes interpretações de Dunham e Fry, que exalam uma química perfeita e convencem como filha e pai. Tal decisão permitiu que à fotografia, assinada por Daniela Knapp, coubesse a função de marcar, pontualmente, o quão opressivo e angustiante pode ser revisitar nossas memórias ruins. Ruth e Edek chegam à Polônia em pleno inverno. Os dias são quase sempre cinzas, pesados, há pouquíssimos raios de sol. E isto ao ar livre, pois quando a ação de desloca para os ambientes fechados, tudo fica ainda mais soturno. Assim, ao longo de quase duas horas de filme, a trama consegue transitar entre a leveza e a dor, o riso e o choro, com equilíbrio em uma delicada tragicomédia. 

O Holocausto, por sua importância histórica, pelo grau incomensurável de barbaridade, é, sem dúvida alguma, um dos temas preferidos tanto de Hollywood, quanto do cinema europeu. Todos os anos temos uma ou algumas novas produções abordando o assunto por diferentes vieses. Ano passado, por exemplo, tivemos Zona de Interesse que trata da temática de uma maneira menos convencional. Esta falta de convencionalidade, somada as suas evidentes qualidades, fizeram o longa ser reconhecido, se destacando em meio à multidão e faturando muitos prêmios. Já em Tesouro, Júlia von Heinz optou por uma fórmula, digamos, mais tradicional como tantas outras películas que a precederam e não, isso não é um problema, afinal, existem outras qualidades e jeitos de se destacar. A forma encontrada pela cineasta alemã se escora, como dito anteriormente, no delicado equilíbrio entre riso e choro provocado pela revisitação das memórias de Edek. Pode não ser o suficiente para conquistar prêmios, mas é motivo de sobra para qualquer pessoa ir à sala de projeção mais próxima e pagar pelo ingresso. 

Desligue os celulares e ótima diversão. 

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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