- Publicidade -

O melhor do Teatro em 2024

Publicado em:

A poucos dias de 2024 encerrar o “ano letivo” da atividade teatral entrar em recesso, dois vívidos ensaios de linguagem sobre memória e vivência, estruturadas sob o expoente da afirmação identitária (o assunto central do repertório dramatúrgico vigente) incandesceram palcos no Rio de Janeiro com atuações inflamadas: “Eu Matei Sherazade”, com Carol Chalita, e “Ideias Para Adiar O Fim Do Mundo”, com Yumo Apurinã. Ambos, certamente, são pontuados por interpretações em estado de graça, nas quais o corpo faz a escrita do eu. É um eu que se afirma entre ancestralidades (a árabe, no caso de Chalita; a indígena, no contexto de Apurinã). Cada uma dessas produções faz, à sua maneira, uma cartografia de potências que foram fustigadas por opressões, sexistas e coloniais, desenhando um mapa de resistências a partir de coreografias nervosas, numa incontinência de verbos e gestos mediadas por outras linguagens, seja a música ou a projeção.

Não me entrego, não

Aproximadas no tempo, as duas montagens expõem o que de mais vigoroso as artes cênicas viram de janeiro até dezembro: a audácia de atrizes e atores em desafiarem personas, em investigarem rotas de (re)invenção. A coroação dessa safra de interpretações inquietas se deu com o espetáculo que virou “O” hit popular de 2024: “Não Me Entrego, Não!”, escrito e dirigido por Flávio Marinho, para o titã Othon Bastos. Foi “A” peça do ano, de longe.

Nonagenário, o Corisco do filme “Deus e O Diabo na Terra do Sul” (1964) lançou mão de todo o ferramental acumulado ao longo de quase sete décadas de carreira para atomizar a fronteira da autobiografia, espelhando em suas recordações transformações sociais e culturais do Brasil. Tanto na pena quanto na batuta, Marinho esbanjou destreza, num amálgama entre o riso e a angústia, pavimentando com a História uma apoteose para um deus da cena investigar-se. O desempenho de Othon é sublime.

Nesse torvelinho da decantação do biopic, ou seja, da épica biográfica, um estudo sobre o espaço (da cena, das artes visuais) emergiu no Teatro Poeira com o aríete Carolyna Aguiar a confirmar seu vigor inventivo à frente de “Lygia”. Mais do que um apanhado dos feitos da artista plástica Lygia Clark, o texto de Maria Clara Mattos (que assinou a direção em duo com Bel Kutner) é uma (notável) reflexão sobre o efêmero e o perene no âmbito da criação. 

"Um Jardim Para Tchekhov"

Senhora das encruzilhadas performáticas, Maria Padilha também retornou todo-poderosa à ribalta, com “Um Jardim Para Tchekhov“. Brilhou ao lado de uma trupe em alquimia plena (com destaque para Olivia Torres) no texto mais maduro da temporada 2024, assinado por Pedro Brício em fricção com Tchekov. 

Além dela e de Othon, outra divindade, Marco Nanini, voltou à cena carioca desconstruindo moralismos nacionais vigentes, apoiado no encenador mais provocativo do país nas últimas quatro décadas: Gerald Thomas. “O Traidor” desnuda a “patafísica” de um país que optou por se burocratizar discutindo o papel do teatro como antídoto para a perda gradual de lucidez da nação. É, de longe, o trabalho de direção mais audaz visto em palcos. Não por acaso, ao lado dele, figura com louvor a excelência (geraldthomiana até a medula) de Michel Melamed em “Um Filme Argentino”, uma engraçada triagem da tolerância afetiva. A cenografia refinada de Marieta Spada, galvanizada pela luz de Adriana Ortiz, é um dos trabalhos plásticos de maior vigor do primeiro semestre, um período em que o CCBB foi solapado pelo suspense “Claustrofobia”, urdido com um quê de Brian De Palma na direção de Cesar Augusto. Nesse thriller, Márcio Vito divide-se entre vários personagens numa erupção de força.

Ainda na conjugação do verbo “atuar” (bem), Renato Livera encarou a aspereza da literatura do chileno Roberto Bolaño (1953-2003) fazendo de “Deserto” uma celebração da latinidade que faz avançar o projeto estético autoralíssimo do encenador Luiz Felipe Reis. Hoje, ele desponta como herdeiro de uma tradição de diretores amparados numa carta de intenções filosófica sobre a condição humana. Seu domínio do timming cênico é inquestionável.  

Alarmante em sua reflexão sobre bullying, “A Névoa”, baseado em texto de Michael Perlmann, trouxe o cancelamento para o banco dos réus, mas estendeu uma cadeira a seu lado também para (acusar, com razão) a homofobia, debatendo a brutalidade (ainda) vigente contra formas de amor que desafiam “normatividades” das mais jurássicas. A iluminação cálida de Aline Santini amplia o tom de zona de conflito de cada troca de acusações, de cobranças.  

Na seara dos musicais, foi difícil encontrar o que fugisse do lugar comum e realçasse o gênero no drible do dó de peito. Uma boa exceção foi “Rio Uphill”, o ensaio geopolítico de Juliana Pedroso e Matt Gurren sobre a resiliência periférica. Apesar do classicismo exacerbado, “Tom Jobim” exulta eficácia na mirada afiada de João Fonseca como encenador, bem amparado pelo Vinícius de Moares de Otávio Müller. 

em 2024, o humor, terra massacrada pela correção política, teve pouco a dizer em 2024, sufocado pela mordaça de patrulhas ideológicas. Apesar delas, as galhofas de Antonio Tabet como Peçanha, em “Protocolo de Segurança”, salvou a comédia da pasmaceira. No âmbito da comicidade de costumes, o fofo “Aconteceu Num Domingo”, com Ana Paula Novellino, Eber Inácio e o cãozinho Wellington deu um toque de lividez às crônicas sobre a vida de casal. 

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -