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A Verdadeira Dor: Kieran Culkin em primorosa atuação

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Em “Sagrado”, um dos meus livros policiais favoritos, do romancista e roteirista Dennis Lehane, um personagem solta, lá pelas tantas, a seguinte frase: “A dor é carnívora”. A crítica da vez não é sobre a adaptação para os cinemas do referido romance, mas foi quase impossível não lembrar destas palavras assistindo A Verdadeira Dor, segundo longa-metragem do ator Jesse Einsenberg como diretor e roteirista. E não deu para deixar de pensar porque, da primeira à última cena, literalmente, enxergamos o verdadeiro protagonista da história, Benji (Kieran Culkin), com uma expressão de quem já foi devorado por uma dor profunda e devastadora. 

No enredo, Benji e David Kaplan (o próprio Jesse), primos em primeiro grau, decidem viajar para a Polônia, onde nasceu a avó deles. Estadunidenses de nascença e de criação, eles conhecem a história da sua família, formada a partir de sobreviventes do Holocausto, apenas pelos livros de história e através dos relatos orais. Desta forma, como tantos outros descendentes, a intenção de ambos parece ser adquirir um sentimento de pertencimento a uma identidade há muito perdida, seja pela necessidade de algumas pessoas em não lembrar dos horrores do passado, seja por acreditar que vivem em um mundo idílico e seguro. Uma informação importante a acrescentar é o fato de que a avó faleceu, mais ou menos, seis meses atrás.

Diferentemente de Tesouro, filme sobre o qual escrevi ano passado, aqui para o Rota Cult, Benji e David não vão sozinhos, eles se juntam a uma pequena excursão formada por um casal e uma mulher de meia idade, todos os três com raizes na Europa Oriental; e um jovem africano convertido há dez anos ao judaísmo. Uma turma com origens, objetivos e personalidades diversas, o que resulta em uma mistura heterogênea e propensa a muitas doses de confusão. Entretanto, ninguém ali parece mais diferente dos demais do que o próprio Benji, nem o primo se assemelha a ele. 

Se Benji, em sua primeira aparição já tem aquela cara de devastado, David, por sua vez, passa uma impressão de tranquilidade. Com a vida estável, um emprego, uma esposa e um filho, é o oposto do outro, desempregado e vivendo no porão da mãe. Deste modo, ele parece se relacionar melhor com a morte da avó. Em compensação, quando observamos o trato social com os demais participantes da excursão, Benji é quem se sai melhor, apesar de uma certa falta de modos e da sinceridade extrema. David é contido. Até mesmo tímido. Comparativamente, dá para ter a impressão de que o carisma natural do primeiro, em relação ao segundo, foi turbinado por um sentimento de quem não tem mais nada a perder e por isso está se lixando para o restante das pessoas e do mundo. 

À medida que os primos incursionam pela Polônia, passando pelos lugares onde os judeus viveram antes de serem exterminados pelos alemães durante a Segunda Guerra, pela casa em que a avó outrora viveu, até chegar a um antigo campo de concentração, todas as diferenças existentes entre Benji e David são acentuadas e velhas tensões reviradas. O resultado são situações que vão de um riso autêntico até a verdadeira dor, tudo em questão de minutos ou fração de segundos, ou seja, simultaneamente muito engraçado e doloroso, provocando no público uma estranha mistura de sensações. 

O texto de Jesse Einsenberg concorre ao Oscar de Melhor Roteiro Original e essa indicação me parece justíssima, pois o seu autor conseguiu por meio de uma certa verborragia, diálogos vorazes e afiados e diversas situações que oscilam do banal ao surreal, transmitir tudo o que pretendia e fazer os espectadores se compadecerem das dores de todos ali, principalmente das de Benji. Sublimando estas situações, na terra de Fryderyk Franciszek Chopin, uma trilha sonora composta apenas de músicas clássicas concede uma aura de intocabilidade para esta azeitada mistura de drama e comédia, na medida precisa. 

Por fim, é necessário falar da atuação de Kieran Culkin. O irmão caçula de Macaulay (Esqueceram de Mim), como já foi conhecido, é um daqueles casos de artistas que cresceram e apareceram. Na televisão, se destacou na série “Succession” sendo premiado com um Globo de Ouro e um Emmy por ela. Faltava, talvez, um filme para chamar de seu e este é A Verdadeira Dor. E, sim, a obra é dele não só porque é sua a face do sentimento que está estampado no título e que, ao abrir e fechar o filme com frames parecidos, nos diz vós que entrais abandonai todas as esperanças em relação a ideia de que uma viagem poderia curar todas as feridas, como pelo fato de que ele é o verdadeiro protagonista do longa. Eu sei que Kieran está concorrendo a diversos prêmios como ator coadjuvante e provavelmente ganhará o Oscar nesta categoria, porém esta é uma das grandes malandragens da história de todas as temporadas de premiações. 

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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