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Alma do Deserto dá voz a questões identitárias

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Alma do Deserto começa com uma mulher andando em um areal, um plano extremamente ensolarado e quando a câmera foca nela o que vemos é uma pessoa com a pele bastante ressecada, queimada, dando lhe uma aparência mais velha daquela que, provavelmente, é a sua idade. Corta e enxergamos a fachada de uma repartição pública. A personagem em questão chama-se Georgina Epiayu e está tentando tirar a segunda via da sua identidade. A questão é que, quando colhem as suas digitais essas batem com as de um homem. Georgina é uma mulher trans que perdeu todos os seus documentos em um incêndio. Não deixa de ser um plot twist, caso o espectador tenha feito como eu e começado a ver Alma do Deserto, documentário dirigido pela colombiana Mónica Taboada-Tapia, sem ter lido nada a respeito. Esta é também uma boa forma de criar expectativas sobre os desdobramentos da obra. 

Uma produção binacional, Colômbia-Brasil, o filme esteve no Festival de Veneza, ano passado, onde participou da Jornada dos Autores e conquistou o prêmio Leão Queer. Por aqui, antes da sua estreia comercial, foi exibido com sucesso na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e este sucesso não foi inesperado, pois a diretora, ao voltar suas câmeras para a personagem, desnuda-a e dá voz àqueles que estão, seja por questões identitárias, seja por questões econômicas, à margem da sociedade. Georgina é uma indígena da etnia wayúu, moradora de Urritia, uma localidade distante a mais de mil quilômetros da capital Bogotá. Uma conjunção de elementos que não a favorece, tanto por fazer parte da um grupo por si só descriminado, quanto por morar em uma região rural, mais conservadora. 

Ao longo dos 127 minutos de duração da obra, a protagonista vai revelando, aos poucos, os detalhes de sua vida. O documento, perdido para o fogo, queimou em um incêndio, na sua casa, provocado por outros indígenas da etnia wayúu, todos incapazes de aceitar o fato de que Georgina é uma mulher trans. Em algum momento, ela diz que acredita ter por volta de 60 anos de idade e a busca por um novo documento de identificação já dura mais de 40 anos. Ou seja: toda uma existência sem um reconhecimento oficial, vivendo como uma entidade fantasmagórica, o que a privou, entre outras coisas, de votar e exercer o seu direito pleno à cidadania. 

Da mesma maneira como ocorre no recém lançado Luiz Melodia – No Coração do Brasil, sobre o qual lambem escrevi para o Rota Cult, a cineasta, aqui, decidiu contar a história de Georgina através do prisma da protagonista. Não há um depoimento qualquer, as vozes que não são suas pertencem aos poucos personagens que interagem com ela: os funcionários da repartição, as vizinhas e um outro wayúu com quem conversa, sentada, na beira de um lago. E o vislumbre que temos é o de uma pessoa com preocupações e anseios de todos os tipos, como qualquer um de nós. O reconhecimento oficial é importante, no entanto, sua vida afetiva também é. Neste trecho do documentário, o público corre o risco de sentir um aperto no coração devido a melancolia do relato. 

Para saber se Georgina conseguirá o reconhecimento oficial por parte do estado colombiano, vocês terão que ver Alma do Deserto até o final. Com uma fotografia que flerta com o estilo naturalista, ainda que diferente em relação ao gênero, é possível enquadrar o documentário de Mónica Taboada-Tapia no mesmo lugar que as obras-primas “O Abraço da Serpente” e “Pássaros de Verão”, ou seja, dentro de uma relevante tradição colombiana de filmes sobre as questões indígenas. De resto, é bastante curioso que o longa-metragem chegue aos cinemas justo no momento em que a Colômbia vive um embate com os Estados Unidos por conta de questões humanitárias em relação à deportação de imigrantes ilegais, enquanto o país tem os seus próprios problemas humanitários por resolver. 

Desliguem os celulares e boa diversão.

Bruno Giacobbo
Bruno Giacobbo
Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.

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