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Kasa Branca: Luciano Vidigal adentra espaços de reflexão

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A estreia na direção de ficção de Luciano Vidigal é uma alegria só. Depois de muitos anos dirigindo curtas, produzindo os longas dos outros, entregando documentários reveladores (como Cidade de Deus: 10 Anos Depois), seu primeiro longa solo, Kasa Branca, é um daqueles filmes que nascem tão fundamentais quanto tem sido sua trajetória até aqui. Ao contrário do que poderia ser imaginado de um filme carioca sobre um grupo periférico, o que é entregue ao espectador já não corresponde ao que era produzido com essas características no Rio de Janeiro pós sucesso do filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund. É muito bem-vindo que tanta doçura exale de uma produção extremamente carinhosa, tão divertida quanto poderia ser. 

Existe uma economia de detalhamento que não faz do filme algo estanque. Estamos falando de uma concentração de detalhes do relevo de cada personagem, de suas ações próprias e dos eventos que acontecem, que retira do filme um espraiamento de intenções. São qualidades concentradas de observação, que fazem da experiência nunca menos que coletiva. Olhamos para Kasa Branca com os olhos de todos que o filme representa, e pra quem também vive à margem (ou já experimentou essa marginalidade imposta pelo lugar onde se vive), é uma experiência que não se explica. Simplesmente corre nas veias o que já aconteceu ali, por contato direto ou indireto. 

Quando eu falo com empolgação pelo que parece ser a estreia desse cineasta muito experiente na direção, também existe um caráter desbravador de sua voz como cineasta. Mesmo tendo uma população de maioria racializada no país, existem alguns espaços que ainda parecem tomada à marra. Cineastas como André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Letícia Simões, Sabrina Fidalgo, Yasmin Thayná, Déo Cardoso, Jefferson De e Vidigal, entre outros, não estão em número suficiente para que sua representatividade seja refletida em histórias que estejam a nosso alcance em volume merecido, e cada novo Kasa Branca, é como se uma nova possibilidade de novas existências perdessem a invisibilidade no nosso cinema, adentrando espaços de reflexão sobre essa própria representatividade.

Quando um filme apresenta o teor que Kasa Branca encampa, isso vai é um somatório de vitórias que também eleva nossa cinematografia pelo profundo trabalho de recorte cinematográfico, Estamos diante de um finíssimo equilíbrio entre drama, comédia, filme de amadurecimento e de coleguismo (não cabe aqui utilizar anglicismos, como ‘coming of age’ ou ‘buddy movie’), onde é parido um filme que consegue ser isso tudo com liberdade e leveza. Não se eleva desse material algo cheio de arestas para serem aparadas, mas um filme maduro que entende seu lugar dentro do que escolhe mostrar. Se é para apresentar clichê, que o faça da maneira menos viciada possível; se é para encontrar saídas fáceis e até algum ex-machina no roteiro, a experiência de seu autor dribla tal situação com uma graça espontânea e com a consciência de estar refletindo um universo que conhece. 

Isso também é contribuição de seu talento igualmente notável para a escalação e a direção de atores. Rapidamente, Big Jaum e Teca Pereira nos convencem em absoluto a respeito de sua ligação sanguínea, do profundo amor que restou a dois seres abandonados. Neto e avó que não tem mais ninguém, e por isso encontrou na salvação de seu teto um motivo para ir além de resistir. Tudo o que eles reconhecem existe sob a existência instituída por essas paredes. Ao longo das desventuras que ambos empreendem ao lado de dois amigos de Dé, revelam-se os óbvios laços de afeto entre eles e também outras ordens de representação, e Vidigal vai regando em Kasa Branca de um sem número de lugares de fala, criando um painel nada forçado sobre essas existências em comunidade. 

Por trás das gírias e apelidos (confesso que não consigo me conter com o ‘bruxa do 71’), dos passeios aparentemente banais e das fugas quase criminais, do calor que uma paixão pode representar naquelas condições, Kasa Branca se encontra nesse diapasão do afeto. É incomum mesmo que tantos botões sejam apertados, muitos de maneira coletiva, e ainda pareça continuamente uma apresentação fácil de se fazer, onde o prazer de assistir deve ter sido tanto quanto o de fazer. Ainda que o ano esteja apenas começando, estamos diante de uma produção impossível de esquecer. 

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