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O Reformatório Nickel tem aura de delicadeza recriando os anos 1960

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O pesar mais agudo da situação envolvendo os protagonistas de O Reformatório Nickel (que chega no streaming Prime Video) acontece mais ou menos na metade do título, quando finalmente a avó de Elwood consegue ir até o local onde seu neto está, mas é impedida de vê-lo. Não que já não houvesse horror suficiente acontecendo na tela, fora dela e nos ecos de hoje ainda por cima, para nos tirar a fala diante do que assistimos. Indicado aos Oscars de melhor filme e melhor roteiro adaptado, assim como Ficção Americana ano passado, mais um filme falando da realidade dos negros estadunidenses não consegue espaço nos cinemas. Porque será? Colson Whitehead é o autor do livro sob o qual é baseada a produção, e também o responsável por The Underground Railroad, uma das melhores minisséries da década. Ainda que os ecos com o presente estivessem por lá, a minissérie dirigida por Barry Jenkins foi uma aula de audiovisual, e aqui o diretor e roteirista RaMell Ross tem mais base para traçar paralelos contemporâneos. Ainda perseguida sem conseguir espaço para defesa, a comunidade afro descendente estadunidense ainda acompanha as tentativas constantes de massacre consentido pelo Estado; basta assistir ao perturbador curta Incident, indicado em sua categoria também esse ano. 

O Reformatório Nickel

Ross também já tinha sido indicado anteriormente, pelo documentário em longa Hale County: This Morning, This Evening há alguns poucos anos. A tendência à poetização das imagens já vinha testada ali, com resultados surpreendentes em sua força estética. Em O Reformatório Nickel, o cineasta toma a arriscada decisão de construir sua mise-en-scene em torno da narrativa em primeira pessoa do plano, enquanto personagem. O resultado é desconcertante, e sua mistura de realização narrativa nos faz recordar Todas as Estradas de Terra têm Gosto de Sal, outro filme que se desenvolve através de uma composição estética que privilegia a moldura para o plano. 

É como se fluxos de pensamentos e lembranças se transformassem em imagem, e desse grupo de possibilidades Ross tivesse alguma predileção pelo inusitado. O Reformatório Nickel absorve uma narração especulativa que geralmente é utilizada na literatura, e aos poucos o filme vai mudando a perspectiva dessa primeira pessoa, criando uma armadilha para o entendimento do espectador. O que vemos então é uma acúmulo de consciência e material cinematográfico verdadeiro, sem considerar o objeto narrador como outra coisa que não mola integrante do aparato fílmico, e isso é acentuado pelos plots que o filme apresenta, que adensa o resultado para longe de qualquer naturalismo. 

A amizade de Elwood e Turner nasce a partir do seu encontro dentro desse local institucional que se assemelha a uma versão sutil do inferno. O que poderia ser aventado como um processo que tenta reproduzir os códigos da mente em sua construção do roteiro, acaba se mostrando muito mais Cinema, com toda sua artificialidade. É um jogo que vez por outra se trai quando é necessário, e embora na maior parte das convenções fique estabelecida uma liberdade que é admirada, em algumas sequências tal decisão só mostra-se sem tanta fibra de seu realizador. Ainda assim, em sua primeira ficção, Ross demonstra uma capacidade jovem para criar uma proposta pouco usada, aqui para desfolhar as tantas faces possíveis para o racismo. 

É uma movimentação toda inusitada que cria em O Reformatório Nickel a aura de delicadeza que outros projetos não costumam ter. Violentíssimo sem mostrar uma gota de sangue, altamente depressivo sem que qualquer sentimento ruim fosse dissecado em cena, Ross consegue um episódio raro de cinema. E no meio da categoria do que é feito, ainda temos uma performance inesquecível de Aunjanue Ellis-Taylor como essa avó abnegada e amorosa, que é vetor emocional do filme. É através do envolvimento tão profundo da atriz indicada ao Oscar por King Richard que a produção consegue tão facilmente tocar o espectador, mesmo que seja uma obra de difícil absorção do público. O resultado, a quem não desistir de um certo radicalismo, é um trabalho cheio de frescor com uma montagem incrível de Nicolas Monsour (o homem por trás de Nós Não! Não Olhe!), tornando o que poderiam ser esquetes em quadros vivos da memória e do tempo. 

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